segunda-feira, 17 de março de 2014

Animais “itanhaenses”




Os gatos tem um jeito
De caminhar em minha alma
Como se minha alma fosse
Um tapete encantado,
Um tapete de lua
Ou uma ponte sobre
Um rio dourado.
(Roseana Murray. In: Luna, Merlin e outros habitantes. Belo Horizonte, Miguilim, 2002)

Para compor a série fotográfica dos “animais itanhaenses”, caminhei por diversos bairros durante as férias de janeiro para acompanhar a diversidade dos locais, população e seus animais. Percebi que onde quer que eu fosse sempre encontrava algum animal doméstico passeando pela casa ou quintal, ou, no caso de gatos, debruçados na janela, sonhadores, preguiçosamente. De herança caiçara (BRANCO, 2005), encontrei diversas casas nas áreas periféricas em que havia criações de galinha, cavalos, enfim, toda sorte de animais oriundos de áreas rurais. Nas fazendas e chácaras mais afastadas, próximas à Serra do Mar, existem famílias que criam animais selvagens, não para prendê-los, mas os alimenta, convive com eles e estes são livres, indo e voltando sempre.
Os inseparáveis cães estão tanto nas áreas urbanas, quanto nas áreas rurais e periféricas. Deitados na soleira da porta, passeando pelas ruas, latindo para quem passar, brincando com o que estiver em sua frente, embrenhando-se no mato em busca de sei lá o quê. Houve cães, que encontrei em meus trilhares que ousavam aventurarem-se até mesmo na praia e os mais ousados entravam no mar, acompanhados por outros cães ou sós. A felicidade destes era contagiante, quando nossa cidade está na época em que há pouco ou nenhum turista, as praias desertas são os locais mais procurados pelos animais “itanhaenses”.


A Praia é só nossa! Foto de Thais Oliveira Silva. 16. Mar. 2012


Há pouco estive embrenhado no mato, caçando. Foto de Thais Oliveira Silva. 08. Jan. 2012




Existem também muitos animais na cidade sem dono, mas estes sabem cuidar de si mesmos, apesar de todas as dificuldades que passam.
Há um cachorro que vive na Orla da Praia do Sonho exatamente: não no sentido de ir sempre lá, ele mora na praia. Tem um imenso quintal de areia só para ele cavar o quanto quiser, é um animal adorável que gosta de ficar no calçamento da Orla, observando atentamente quem passa, com ares de sonhador. Muitos já tentaram levá-lo consigo, entretanto ele volta, gosta mesmo é da liberdade que a praia lhe oferece. Os guarda-vidas os alimentam e o protegem dos dias de chuva. Deram-lhe o nome de Pirata, muito sugestivo, já que este também é apaixonado pelo mar e pela liberdade. Na foto  abaixo, vê-se o registro que fiz numa tarde nublada e solitária. O muro o qual está recostado é o da Orla da Praia do Sonho, o tempo estava bem frio neste dia, mas ele não estava incomodado nem um pouco. Seu olhar estava fixo nas ondas do mar à sua frente.


Liberdade, apenas liberdade. Foto: Thais Oliveira Silva. 03. Jul. 2012



O Jantar está na Mesa! Foto de Thais Oliveira Silva. 24. Jan. 2012



Em meus trilhares houve diversos encontros com as aves também. Porém meus registros captaram os urubus e as gaivotas, os quais disputam intensamente a orla da Praia. No caso dos urubus, obviamente estão interessados nos peixes putrificados que a maré traz para a praia. Na imagem acima, vemos um urubu e seu jantar sob os olhares de muita gente, já que ainda estamos no mês das férias e os turistas a moradores ainda frequentam constantemente a praia. Ele não está nem um pouco interessado com os transeuntes, seu jantar lhe parece apetitoso demais para que possa ser abandonado pelo medo das pessoas. Algo curioso foi captado nesta imagem. O reflexo do animal sob a areia úmida forma a imagem de um pássaro ambíguo: tem-se a impressão de haver duas cabeças, dando então para formar uma figura de urubu tanto pela esquerda, quanto pela direita.
Já as gaivotas, estas são avistadas sempre em bando. Seu local preferido é a Praia dos Pescadores, onde esperam quase que com segurando garfo e faca o retorno dos barcos de pesca. Quando avistam as canoas voltando à praia há uma efervescente revoada sobre os pescadores, os recebem como os cães a seus donos. Na foto abaixo temos a imagem de um grupo de gaivotas voltadas para o sol, de costas para o mar. Elas sabem que não é preciso ficar de frente para as águas, já que acabaram de se despedir de seus queridos pescadores. Neste momento o que elas estão procurando é apenas receber os raios solares por todo seu corpo. A Figura 101 é o registro do momento em que consegui chegar um pouco mais perto delas sem que saíssem voando. Com minha aproximação elas começam a fugirem, olhando-me zangadas, já que eu estava atrapalhando o banho de sol delas.



 Lugar ao Sol I. Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012



Lugar ao Sol II. Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012


Como em minha poética visual não falar dos gatos? Eles me acompanham desde que vim morar nesta cidade, com quatro anos de idade. Sempre os amei. Gostava de nomeá-los, senti-los bem perto de mim, apesar das ordens expressas da minha mãe e do médico para me afastar deles devido meus problemas respiratórios, mas eu nunca consegui ficar longe deles. Meus hoje em dia, não morando mais em casa térrea, gosto de andar pela cidade “caçando” gatos, adotando-os nem que seja apenas por ínfimos instantes. Não sei de onde vem esta atração, se é a leveza tão bela de seu caminhar, em que parecem estar sempre andando em fios invisíveis, lindíssimos equilibristas, se é sua atitude não bajuladora, como a dos cães, os gatos são livres, independentes, mas nem por isso deixam de serem carinhosos tão amáveis eram os gatos de minha infância, que, ao perceber que estava triste, achegavam-se a mim, me conheciam de cor e salteado, ficavam tão próximos, olhando-me profundamente, me aconselhando silenciosamente, com uma paciência infinita, me contando histórias do mundo dos gatos, aos poucos me ensinando a ser como eles.
Eu poderia ter sido imparcial e distribuído igualmente as fotografias em números idênticos aos cães, aos gatos e aos demais animais que apareceram em meus trilhares, mas é impossível, bem como Martins (2008) trata, não há como fotografar e ser imparcial, a imagem sempre irá te “denunciar”, mostrando quem é você, o que você ama. E é isto o que amo: não há como evitá-los.
A Alameda Emídio de Souza é um lugar fascinante. Situada próxima à Boca da Barra, aonde o Rio vem desaguar no mar, o local, encontrado no bairro da Praia dos Pescadores é sempre procurado por pescadores, amadores ou profissionais; artesanais ou com aparelhos sofisticados para a pesca e claro: uma infinidade de gatos. Não digo que eles também são pescadores, nem precisam, pescam com seu charme e insistência, rodeando os pescadores a qualquer hora do dia e da noite. Ganham sempre os peixes menores que estes pescam. Gatos que saboreiam intensamente sua liberdade, chamando atenção dos transeuntes para a harmonia entre eles e os pescadores. Quando passo por lá percebo o entendimento silencioso entre eles, é um momento admirável. 




O olhar. Foto: Thais Oliveira Silva. 04. Dez. 2011

Neste local ocorreram minhas primeiras fotografias e qual não será a surpresa do leitor ao saber que minha primeira fotografia para esta série direcionada ao registro de Itanhaém, no dia 02 de dezembro de 2011, foi uma gata preta que sempre brinca comigo de “esconde-esconde”. É extremamente arisca, não se deixa enganar, bajular, mas está sempre a me observar minha lente da câmera fotográfica.
A imagem acima mostra a felina me observando com um misto de curiosidade e medo. Gosto de este olhar, ele é profundo, eu poderia mergulhar nele sem nunca esquadrinhar todos seus segredos. A beleza desta felina, para mim, encontra-se no contraste de seus belos pelos negros e seus vivos olhos amarelos.
Eu poderia escrever páginas e páginas de meus encontros e despedidas com os felinos que encontrei pela cidade, cada qual com uma linda história para me contar, cada qual com um diferente olhar, as como não é possível, restrinjo-me apenas a declarar que foram muitos encontros, em diversos e inusitados locais. Houve o encontro com a gata sentinela dos Casarios do Centro Histórico da cidade, em que tive de me abaixar para registrá-la embaixo de um carro, tímida, misteriosa. A felina sabe como vigiar as casas centenárias com seus grandes e encantadores olhos cor de caramelo e seu macio pelo da cor de neblina
Minha relação com a felina envolveu muita paciência de minha parte, já que para conseguir a atenção e a simpatia de um gato é preciso muito tempo. Na Figura 103 a gatinha ao ver minha aproximação pulou do muro dos casarios, a qual estava postada e escondeu-se embaixo de um carro estacionado. Abaixei-me para fotografá-la e fui recebida com este meio metro de língua para fora.
     Os gatos são animais independentes e algumas vezes possuem uma pitada de arrogância, porém quando conseguimos ganhar sua confiança tornam-se dóceis, atenciosos, travando conosco longas conversas telepáticas, quando insistem em encarar-nos por um longo tempo. Na foto abaixo consegui com que ela saísse debaixo do carro, mas ainda havia desconfiança no ar. Fui paciente até que a bela felina ficasse a vontade comigo, demonstrando todo carinho peculiar de um gato. Finalmente registrei o momento da entrega do animal, onde esta estava totalmente à vontade com minha presença.


Miss. Simpatia. Foto de Thais Oliveira Silva. 19. Mar. 2012 



Persistente Desconfiança. Foto de Thais Oliveira Silva. 19. Mar. 2012


Êxtase Foto de Thais Oliveira Silva. 19. Mar. 2012


Na Figura 106 está registrada uma bela gatinha que acredita que a folhagem do vaso da porta de minha casa pode escondê-la. Sua mãe, uma gata preta que cuidamos, dando-lhe sempre carinho e comida levou seus três filhotes para a porta de nosso apartamento numa madrugada. Certamente seguiu o raciocínio: se eles são bondosos comigo, certamente o serão com minhas belíssimas filhas. Porém não tínhamos mais pretensão de ter animais em casa, as demais gatinhas desistiram, voltando de onde vieram, mas esta foi persistente. Diversas vezes que eu abria a porta lá estava ela, “camuflada”, certamente pensando: “só um descuido dela e eu entro e me escondo no guarda-roupa”, como tentou várias vezes. Porém numa tarde as gatinhas filhotes sumiram. Espero que elas estejam bem, esta era tão sagaz, conseguindo até mesmo caçar pombos no estacionamento. Os gatos são peritos na arte do desaparecimento. 



Esconde-esconde. Foto de Thais Oliveira Silva. 08. Mai. 2012


Augusto era o gato de minha falecida avó. Quando eu ainda morava com ela, o felino mostrava-se sempre inalcançável, não gostando de colo ou qualquer tipo de agrados, sua paixão era sair pelo mundo e voltar dias depois, enfim, um gato boêmio. No dia 04 de janeiro de 2012, em que o registrei, ele estava deprimido, imóvel em cima da caixa de luz, observando a rua. Foi a primeira vez que pude passar a mão em seu macio pelo, sem que me custasse um belo arranhão no braço. Neste dia Augusto aproveitou cada segundo de carinho que estava recebendo e, em retribuição, como se pressentisse, fez belas poses para minha lente, como se estas imagens fossem seu pedido de desculpa por tanto tempo de discórdia entre nós.
         Na imagem abaixo está registrada uma das poses mais frequentes do gato Augusto. Por alguns dias ele tornou-se uma espécie de sentinela, estava muito atento a quem quer que passe, seus olhos focavam apenas a rua. Acredito que ele daria tudo para rever minha avó.




 Deprimido. Foto de Thais Oliveira Silva. 10. Jan. 2012 



Á espera de quem não irá retornar. Foto de Thais Oliveira Silva. 10. Jan. 2012

Aprecio a composição da foto abaixo, pois é como se o Augusto estivesse sentindo a instabilidade da composição em diagonal e divertindo-se com ela, aproveitando a adrenalina motivada pela inclinação do enquadramento, tendo seu “mundo inteiro” fotografado. Já que por um longo período aquele era o único lugar em que ele ficava, esperando minha avó regressar, passou dias em vigília, mas após uma longa espera, ele desistiu, percebendo que para onde ela foi não poderia mais voltar.


Instabilidade do diagonal. Foto: Thais Oliveira Silva. 10. Jan. 2012





Por favor, não me siga! Foto de Thais Oliveira Silva. 24. Abr. 2012


            O gato acima é um dentre os tantos que povoam a Alameda Emídio de Souza, a qual está ancorada alguns barcos e é frequentada diariamente por pescadores na Boca da Barra. É um animal extremamente arisco que acredito que eu levaria uns mil anos até que ele estivesse afetuoso comigo. Na cena registrada, ele está fugindo de mim, não quer saber de carinho algum, talvez nunca tivessem lhe proporcionado. Grande parte destes gatos que ali frequentam é arisca, desconfiam de tudo e de todos, estão a todo o momento em alerta. Busquei nesta imagem criar um contraste entre a forma quente e suave do gato e as formas mais rígidas e frias de tudo o que está à sua volta. Ele tem um caminhar cansado e pesado. Pesado como é tudo o que o rodeia. 



Afetos. Foto de Thais Oliveira Silva. 21. Jan. 2012

            Há um clima totalmente diverso acima. Pai e filho trocam carinhos em uma deliciosa série que fiz destes dois lindos gatos pretos que encontrei no Morro Piraguyra. Não inclinei a máquina fotográfica nesta imagem, pois não vi necessidade, já que os próprios corpos destes gatos estão inclinados, num movimento dinâmico, acolhedor. O filhote é extremamente afetuoso, não desgrudava de seu pai, exibiam-se para a câmera o máximo que conseguiam.
            Ainda estão lembrados do gato mal humorado ? O que um bom peixe e uma tonelada de confiança não faz? Este pescador é extremamente paciente, longanimidade é sua prioridade. Este gato foge de quem quer que se aproxime dele, mesmo que esteja carregando um imenso peixe. Mas com este pescador, o gato mal humorado construiu uma ponte. Sempre quando ele vai à Alameda, o gato lhe procura, gosta de sua companhia, dorme em paz a seus pés após ganhar os peixes pequeninos que não interessam ao experiente pescador. Na foto abaixo, numa tarde nublada e fria, atípica de verão, o gato esta lhe lançando um olhar suplicante, pois pressente que o pescador acaba de trazer à tona um peixe pequenino, mas o homem é paciente, delicadamente está tirando o anzol do peixe. Instantes depois o gato deliciou-se com seu prêmio.


O olhar suplicante.  Foto de Thais oliveira Silva 18. Jan. 2012

Os felinos estarão sempre espalhados pela cidade, e não apenas eles, há outros tantos animais. Nós sempre compartilharemos o gosto de cria-los, oriundo dos antigos caiçaras, com seu modo particular de falar, em que Zwarg, neste cordel do folclore regional, nos fala da relação de um caiçara com seus animais domésticos e, com o uso da licença poética, transcreve o modo da fala de um caiçara:
Onde está esse gatinho miseráve!
Esse gatinho miseráve onde é que está?
Será que está, aqui debaixo da cama?
Ou tá no fogão, sujo de carvão a me esperá?
                                                                                                                      
E onde é que está aquele galo caôlho?
Aquele galo que é viúvo, onde é que está?
Por que num canta? – “brava-gente-brajirêra?”
Que é para o sol! A madrugada despertá...

Tem tanta purga e percevejo nesta “casa”!
Que eu passo o dia inteiro a me coçá!
 E eu não sei, se chamo o Corpo de Bombeiro...
Ou se telefono é pra polícia Especiá!

E o cachorrinho que só vive na vizinha?
É lá que tem comida, e eu sou de cozinha...
Esse cão sarnento nunca foi é caçadô!
E tô comendo é só fritura de “içá”...

Essa vizinha, logo tá lavando rôpa!
Ela é viúva e vim aqui pra conversa...
Que qué parpite, prá eu í joga-no-bicho!
E se ela, acertá! – é capaz de me beijá...
(ai que vergonha)

(Ernesto Zwarg. Êta Gatinho Miseráve! In: Em “Conceição de Itanhaen” tem! Itanhaém, Gráfica Básica, 1999)

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