Nas primeiras horas
da manhã
Desamarre o olhar
Deixe que se derrame
Sobre todas as coisas
belas
O mundo é sempre novo
E a terra dança e
acorda
Em acordes de sol
Faça de seu olhar
imensa caravela
(Roseana Murray.
Receita de Olhar. In: Receitas de Olhar.
São Paulo, FTD, 1999)
Ao utilizar o termo “Olhar Criativo” para se
descrever o processo de minha a poética visual, baseei-me na visão de Ostrower
(2009) onde esta vê a criatividade de maneira mais profunda e humana do que a
muitos que a consideram um privilégio de uma pequena minoria. Em suas palavras:
“Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a realização
desse potencial uma de suas necessidades [...] De fato criar e viver se
interligam”. (OSTROWER, 2009, p.5)
Os
processos criativos não devem ser vistos apenas ligados ao fazer artístico. Em
nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer artístico, em
que se encontra liberdade de ação e um vasto envolvimento emocional e
intelectual, acreditam que unicamente o trabalho artístico é possuidor da
criatividade, porém a autora não é concomitante a este pensamento. Para ela, o
criar deve ser entendido num sentido global, “como um agir integrado em um
viver humano.” (OSTROWER, 2009, p.5)
Basicamente,
criar é dar forma a algo novo; é a capacidade de relacionar, configurar,
significar. O homem cria, não porque desejou, mas sim “porque precisa; ele só
pode crescer enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma,
criando” (OSTROWER, 2009, p.10)
Mesmo
em se tratando de operações intelectuais ou conceituais, a criação acontece
principalmente através da sensibilidade. Mesmo que o senso comum insista, a
sensibilidade não é apenas um dom de artistas e de alguns poucos privilegiados.
Em si ela é um patrimônio de todos os seres humanos. Mesmo que seja em
diferentes graus, ou até em áreas sensíveis diferentes, todos temos desde o
nascimento, um potencial de sensibilidade. Tendo sempre em vista que a mesma é
a porta de entrada de sensações, representando uma abertura constante ao mundo
e nos liga rapidamente ao que acontece ao nosso redor. Como nos atesta a autora,
a sensibilidade, portanto se converte em criatividade ao ligar-se estreitamente
a uma atividade significativa para o indivíduo.
Ao
homem torna-se possível interligar o ontem ao amanhã. Ao contrário dos animais,
mesmo os mais próximos na escala evolutiva, o homem pode atravessar o presente,
pode compreender o instante atual como extensão mais recente de um passado, que
ao tocar no futuro novamente recua e já se torna passado. Dessa sequência viva
ele pode reter certas passagens e pode guarda-las, numa ampla disponibilidade,
para algum futuro ignorado e imprevisível. (OSTROWER, 2009, p. 18)
Não
devemos perder de vista que a criação se desdobra no trabalho, vendo-o como uma
necessidade que logo irá gerar as possíveis soluções criativas. Nem a arte
existiria criatividade se nós não a encarássemos como um fazer intencional,
produtivo e necessário que amplia em nós a capacidade de viver. “Retirando à
arte o caráter de trabalho, ela é reduzida a algo de supérfluo, enfeite,
talvez, porém, prescindível a existência humana.” (OSTROWER, 2009, p.31)
Infelizmente persiste o vício de considerar que a criatividade só existe nas
artes e isto só faz crescer a deformação da realidade humana.
Este pensamento desumaniza o trabalho em
geral, reduzindo-o a uma rotina mecânica, sem convicção ou visão ulterior da
realidade, excluindo consequentemente a conscientização espiritual pertinente
ao trabalho, através da atuação significativa para sim mesmo. Por este motivo
até hoje a arte está submersa neste mar de subjetivismos: enquanto o fazer humano
é reduzido a atividades não criativas, à arte, uma imaginária
“supercriatividade deformante” (OSTROWER, 2009, p.39), em que não existem
delimitações, um não comprometimento do artista com a matéria. E é exatamente o
contrário do que deve ser feito, conforme nos esclarece Ostrower, que ao fazer,
“ao seguir certos rumos a fim de configurar uma matéria, o próprio homem se
configura. [...] Estruturando a matéria, também, dentro de si mesmo ele se
estruturou. Criando, ele se recriou” (OSTROWER, 2009, p.51)
Em
todas as matérias com que o homem lida se fará sentir sua ação simbólica. Em
todas as linguagens, ao articular uma matéria, o homem deixa sua marca,
simboliza e indaga, movido por sua pergunta ulterior, que é pelo sentido de
viver. Rearticulada, a matéria retorna ao homem. Na forma configurada, cada
pergunta encerra uma resposta. (OSTROWER, 2009, p.53)
Este
é o caminho que se encontra a frente de qualquer ser humano. A sua orientação
só lhe será revelada ao longo do trilhar. Este caminho não se compõe de pensamentos,
conceitos, teorias, nem de emoções – no entanto é resultado de tudo isto. Este
caminhar envolve uma série de vivências, onde cada decisão e a cada passo será
de vital importância para seu crescimento. A autora continua a nos esclarecer,
revelando-nos que cada indivíduo terá que descobrir seu próprio caminho,
descobrirá caminhando, sem que o resultado seja aleatório. Andando, cada um
configura o seu caminhar. No seu tempo, “ chegará a seu destino. Encontrando,
saberá o que buscou” (OSTROWER, 2009, p. 76) A intuição o ajudará.
A
intuição vem a ser um dos mais importantes modos cognitivos do homem. Ao
contrário do instinto, permite-lhe lidar com situações novas e inesperadas.
Permite que, instantaneamente, visualize e internalize a ocorrência de fenômenos,
julgue e compreenda algo a seu respeito. Permite-lhe ser espontâneo. (OSTROWER,
2009, p.56)
Por
espontaneidade entendemos: ser flexível, sem a rigidez defensiva ante o mundo,
permitindo configurar espontaneamente tudo o que toca. A autora ainda propõe
que venhamos desvincular a noção da criatividade da busca da genialidade, de
originalidade e mesmo de invenção, sendo esta entendida como invento de uma
novidade.
Uma
vez que estes atributos como ser genial, original e inovador correspondem ao
legado do Renascimento, já que na época a individualidade procurava impor-se
socialmente, época esta que se avaliavam as qualidades extraordinárias de um
trabalho realizado. Hoje estas ideias ainda persistem: a sociedade nos pede que
sejamos “criativos, originais e geniais”. Infelizmente, em nosso tempo, só
consegue ser criativos os que conseguem ser “genial”. A autora prossegue
admitindo:
Não alguém que fosse espontâneo, autêntico,
imaginativo, autêntico, imaginativo, sensível, tampouco se concebe que o
potencial criador do homem possa desdobrar-se no trabalho ou em função da
maturidade alcançada, na visão generosa da convivência humana, pois a própria
criatividade é considerada como algo inteiramente à margem do natural. (OSTROWER,
2009, p.133)
A
genialidade proposta desde então é um parâmetro esmagador para qualquer tipo de
processo normal de maturação. E ainda de acordo com Ostrower (2009), seu valor
é arbitrário e superficial. Este padrão desconsidera a possibilidade de cada
pessoa encontrar-se dentro de sua própria sensibilidade de ser valorizada
naquilo que ela realmente pode fazer. Entretanto, há condições de vida em que
muitos estão enjaulados, com horários e prioridades que não sejam suas próprias
vidas, impossibilitando cada vez mais que tais pessoas vejam em seus trabalhos
algo que irá ajuda-los a desenvolverem-se espiritualmente, enfim integralmente
em todas as áreas, nesta sociedade que Ostrower (2009, p.134) denomina de
“fragmentada e complexa”.
Portanto,
tendo em vista o pensamento vivo da autora, criar é bem mais do que inventar,
mais do que produzir algum fenômeno novo. Criar é dar forma a um conhecimento
novo que é ao mesmo tempo integrado em um conhecimento global. Nunca deve ser
tratado como algo isolado. O ato de criação por ser integrado em todas as áreas
de sua vida, irá enriquecê-lo espiritualmente tanto a si mesmo, quanto ao
indivíduo que irá recebê-lo: Ambos se renovam de alguma maneira. No que se diz
respeito á arte, a novidade em si não é qualificação para o que denominamos
criativo, não é suficiente enquanto o novo permanecer apenas um aspecto
circunstancial externo, que não reestrutura a linguagem. A autora justifica-se
dizendo:
Ao
configurar a experiência da realidade em um determinado momento histórico, a
forma expressa os conteúdos vividos e define o momento expressivo. Como
configuração do momento, ela é intransferível e é e é definitiva, não podendo
ser superada por qualquer outra forma. O momento da vivência, esse sim, poderá
ser seguido por outros momentos que, por sua vez, haverão de requerer novas
formas. Mas a forma não. Uma vez fisicamente configurada, ela existe em si,
precisa e completa. Em sua estrutura se concretiza uma significação. Ela, forma
plenamente inter-relacionada e ordenada em múltiplos níveis, seletiva na ênfase
e nos meios de expressão, obra de arte no decorrer dos anos continua com suas
qualificações intactas. Cada vez que a vemos e a revemos, ela se renova em nós
e nos renovamos nela. Ela não se esgota nem se repete na renovação, porque nós
não nos repetimos em momentos de nossas vidas. Não fosse assim, como ouvir
comovidos uma sonata pela décima vez? Por que olhar o mesmo quadro, já
familiar, reler um livro, rever uma peça de teatro? Por que arte? A novidade
passou ao primeiro encontro com ela. (OSTROWER, 2009, p. 137)
Quem há de prender o meu Olhar? Foto de Thais
Oliveira Silva. 06. Dez. 2012
Desejo,
portanto, expressar-me livremente, sem as amarras que podem nos sufocar todas
as possibilidades de criação latentes em nós. Desejo sim, através do
enquadramento em diagonal não aceito pelas regras de fotografias na maioria dos
casos que eu a utilizei, e com meu profundo desejo de quebrar regras que me
impedem de me expressar plenamente, transmitir todo meu dinamismo e
instabilidade e força, com minhas cores sempre saturadas e, quando optei por
composições monocromáticas, com seus contrastes bem marcados. Entendendo que:
Ser
livre significa compreender, no sentido mais lúcido e amplo que a palavra pode
ter. Significa um entendimento de si, uma aceitação em si da necessidade da
existência em termos limitados. A vivência desse entendimento é a mais plena e
a mais profunda interiorização a que o indivíduo possa chegar. Ser livre é ocupar o seu espaço na vida [grifo nosso] (OSTROWER, 2009, p.165)
Ao observar a cena que registrei na foto acima,
logo me identifiquei com este gato preto, idealizei a imagem tal como um
autorretrato. Este felino estava numa casa vizinha à minha antiga casa da Rua
das Andorinhas, local onde morei logo que cheguei a Itanhaém e assim que o vi,
ele retribuiu seu olhar com uma mesma intensidade. Tivemos um diálogo silencioso,
eu estava no início de minha poética visual, em Dezembro de 2011, mas desde
esta imagem tive forças e convicção que grade alguma era capaz de aprisionar ou
condicionar o meu olhar.
Tal qual o Sol. É possível impedir seu
nascimento? Com tamanha tecnologia desenvolvida pelo homem contemporâneo, ele
nunca irá conseguir impedir o nascimento do Rei Sol. Ainda que a noite anterior
tenha sido de intenso sofrimento, angústia, frustração ou dor, tais elementos
não são suficientemente fortes para impedir o percurso do Sol. A fotografia abaixo foi
registrada no estacionamento do prédio no qual resido e, numa segunda-feira,
mais um dia de trabalho, após uma tempestade no dia anterior, o Sol tinge todo
o firmamento com cores intensas, refletidas difusamente sobre o esfarelamento
das nuvens, produzindo um efeito estimulante em quem quer que o observe.
Grades não o seguram.
Foto de Thais
Oliveira Silva. 27. Fev. 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário