sábado, 15 de março de 2014

TRILHARES SOB ESTE CHÃO (POÉTICA VISUAL)

As estrelas que de noite eu via
Todas elas lá no céu estão
Mesmo sem vê-las durante o dia
Piscam no céu com o sol gordão
São trilhares de estrelas e eu nem sabia
Que estão lá no céu até mesmo de dia
Como pode o céu ter tanta estrela?
Como pode? Parece um mar de areia...
A areia que na praia eu via
Tantos grãos estão lá no chão
Punhadinho de areia que eu pego na mão
Tantos grãos que não cabem na numeração
São trilhares de grãos e eu nem sabia
Que esse número aumenta de noite e de dia
Como pode uma praia ter tanta areia?
Como pode? Parece um céu de estrelas...
Tanta areia, tanta estrela
Tanta areia tanta estrela.

Palavra Cantada. Trilhares. In Canções Curiosas. Paulo Tatit e Edith Derdyk. São Paulo, Eldorado, Selo: Palavra Cantada, 1998.





Trilhares sob este chão. Foto de Thais Oliveira Silva. 29 de Jan. 2012.

Minha poética visual foi norteada pela infância. A minha e a de meus queridos alunos das quintas séries A e B de 2011 da Escola Municipal Noêmia Salles Padovan, localizada em Itanhaém, aos quais lecionei Artes ao substituir a professora titular, a qual estava afastada por licença médica durante este ano letivo.
 Com eles, pude perceber particularidades de Itanhaém que eu já havia esquecido, pequenas, mas tão grandiosas cenas deixadas para trás. Meus queridos alunos, os quais com minha orientação durante as aulas dadas leram, interpretaram e criticaram diversas imagens de nossa cidade. Imagens de ontem e de hoje. Até que chegamos à parte de produzirmos também. Como seriam nossas imagens? Como nós vemos nossa cidade? Eles produziram plasticamente, através de produções de desenhos com lápis de cor, caneta hidrocor e tinta vitral. No primeiro trimestre do ano supracitado, trabalhamos o assunto.
Meus alunos eram responsáveis e estavam envolvidos neste estudo, trazendo sempre dúvidas e informações sobre nossa cidade. Planejei realizar um projeto-ação com eles no ano de 2012, que durasse um ano letivo, e este seria o meu trabalho de conclusão de curso, mas a direção e coordenação da escola não me permitiram, pois a professora titular retornou e escolheu lecionar para estes alunos. Porém, a semente plantada nestas duas classes, durante o trimestre de 2011 nunca será arrancada.
Assim como Exupéry (2006), também penso que as crianças sabem o que procuram, pois prestam atenção em seus caminhos, seu olhar é apurado. Não quero perder este olhar jamais.
Foi por eles que ousei trilhar pelo caminho inusitado da fotografia com o enquadramento em diagonal. Não foi algo que fui precursora, certamente não estou sendo impertinente ao utilizar o termo “inusitado”, já que o grande percursor deste enquadramento é Alexander Rodchenko (1891 – 1956), artista plástico, escultor, fotógrafo e designer gráfico russo, sendo um dos fundadores do construtivismo russo e design moderno russo. Sua fotografia era socialmente engajada, inovadora, e oposta ao retrato estético da época. Ciente da necessidade de uma série documental de fotografia analítica, ele fotografou frequentemente seus assuntos em ângulos ímpares, geralmente muito de acima de ou abaixo, para chocar o espectador. Suas imagens eliminaram o detalhe desnecessário, enfatizaram a composição diagonal dinâmica, e foram concebidas com o posicionamento e o movimento dos objetos no espaço.
            Após Rodchenko, outros fotógrafos ousaram uma ou outra fotografia neste enquadramento, mas não há nenhum registro que algum outro fotógrafo tenha fotografado uma vasta série neste enquadramento. Apaixonei-me por este enquadramento, pois sua principal característica é conferir à imagem dinamismo e movimento, ela reflete a mim mesma. Não é estática, nem formal. Tem energia, conduz o olhar dum canto a outro da imagem.  Senti-me forte e segura ao poder estar presente em diversos recantos de minha terra, especialmente no alvorecer, um momento sempre belo, e realizar seu registro.
A minha força, sem dúvida, chegou-me através da liberdade em estar utilizando o meu paradigma do horizonte em transversal. Sem ele, as imagens obtidas continuariam maravilhosas, mas estariam estáticas, solenes. Estas duas características não me representam nem um pouco, prefiro todo este dinamismo, sensação de movimento, instabilidade que o enquadramento em diagonal nos confere.
Bresson (2004) nos conta que a câmera fotográfica não é um instrumento apto para responder o porquê das coisas, ela é antes feita para evocá-lo, e noutras vezes, ela pergunta e responde ao mesmo tempo. Deste modo, minhas imagens são questões, inicialmente aos meus alunos e agora a quem quer que seja: E se o mundo fosse inclinado? Você é capaz de perceber o que se encontra ao seu redor, em seu cotidiano? Eu desconstruí locais para que eles os percebessem atentamente e os reconstruíssem (ou não). Foi um recurso didático e lúdico utilizado para atrair o olhar dos alunos para seu próprio lugar, tantas vezes menosprezado. Gosto de brincar com a possibilidade de te molhar com o rio ou o mar, quando ele está inclinado. A vertigem de ver minha terra tão querida inclinada. Quero e preciso de Arte para me libertar e imprimir todas minhas fantasias, excentricidades. Bresson (2004, p.12) me assegura que isto é possível, já que fotografar: “É uma maneira de gritar, libertar-se, não de provar nem afirmar sua própria originalidade. É uma maneira de viver”. Tencionei retratar minha cidade de modo que me representasse.

As fotos de paisagens são, na verdade, “paisagens interiores”. Os ideais são antiéticos. Na medida em que a fotografia é (ou deveria ser) sobre o mundo, o fotógrafo conta pouco, mas na medida e que é o instrumento de uma subjetividade questionadora e intrépida, o fotógrafo é tudo. (SONTAG, 2006, p.138)

 Eu ousei permanecer com este olhar, pelos meus alunos, desejei ver minha cidade de um modo imaginativo, poético, único, para que eles também a vissem assim e desejassem apreciar cada vez mais nossa terra.
Acredito e não sou a única a crer que o professor de artes precisa manter sempre uma poética visual, também Favero (2008, p. 09), fala que “ao afastar-se da prática artística, o artista – professor inibe o movimento criativo gerador de todo o processo pertinente ao ensino de arte”. Deste modo procurei como arte educadora desenvolver uma poética visual, para que esta pesquisa sobre Itanhaém não estivesse apenas a cargo dos alunos, mas também de mim. Eu desejei preparar um material de leitura estimulante aos meus alunos. 
Ao questionar-me: como devem ser imagens para as crianças? Pude encontrar as respostas com Lewis (2009), que mesmo não enfocando imagens, mas sim textos escritos para crianças, aborda a questão com sabedoria. Clive Staples Lewis (1898-1963) foi o grande criador de “As Crônicas de Nárnia”, em que num artigo posterior à série de livros, fala que para se escrever para crianças não há fórmulas mirabolantes, basta escrever o que você gostaria de ler.
 Como minha série fotográfica é uma narrativa visual, baseei-me nesta declaração do autor para trabalhar: fotografei o que eu gostaria de ver sobre minha cidade, após uma aula, quando discutíamos acerca das imagens nos folhetos turísticos. Desejei vê-la de um modo único, especial, fantasioso, que mantivesse minha personalidade, desejei uma série fotográfica em que me revelasse.

Aliás, tudo na história deve brotar da estrutura de caráter do autor. Para escrever para crianças, temos de partir dos elementos disponíveis de nossa imaginação que temos em comum com elas. Somos diferentes de nossos pequenos leitores não por nos interessarmos menos, ou menos seriamente, pelas coisas de que estamos tratando, mas por termos outros interesses de que as crianças não compartilham. A matéria de nossa história deve fazer parte do mobiliário de nossa mente. Foi essa, a meu ver, uma característica de todos os grandes escritores de literatura infantil, mas nem todos o compreendem. (LEWEIS, 2009, p. 750)

Muitos se sentiriam constrangidos a admitir que sua criação seja pautada em sua infância, mas eu não. Aprendi com Lewis (2009) a não ter medo da crítica recheada de desprezo, quando, como é no caso dele, escrever livros de fantasia. A crítica utiliza o termo “adulto” como sinal de aprovação. Identifico-me com o autor, pois busquei o lado lúdico e fantasioso do enquadramento em diagonal. Realmente deixei meu lado “criança” aflorar muito mais no processo criativo do que meu lado “adulto”, racional. Porém, nas palavras de Lewis (2009, p. 173) “os críticos para quem a palavra “adulto” é um termo de aplauso, e não um simples adjetivo descritivo, não são nem podem ser adultos,” pois, preocupar-se em ser adulto ou não, envergonhar-se de que se é infantil são características da infância e da adolescência. Quando persistentes até a idade adulta, é algo bem preocupante.
 Não há nada de errado em não perder um gosto que tínhamos quando éramos criança. Não é um motivo de vergonha. Vergonhoso é, de acordo com o autor, não aceitar as coisas novas. Nós não devemos levar nossa vida nunca negando o passado, deixando vivências preciosas para trás, mas sim acrescentando, a cada dia, nunca substituindo, mas sim crescendo. Este é o real sentido da palavra. Criei, portanto esta série fotográfica encarando meus leitores alvo (os alunos das quintas séries A e B do ano de 2011) como iguais a mim. De uma itanhaense para outros itanhaenses.
Uma das particularidades que percebi durante a escrita dos significados de cada foto a mim, foi que tudo foi norteado pelas lembranças de minha infância, de quando minha avó nos levava para passear em diversos lugares daqui. O que Martins (2008) fala sobre a polissemia de significados para cada um, obviamente para o fotógrafo o significado também muda de acordo com o contexto em que está inserido, de acordo o seu momento de vida. Tenho certeza de que se minha avó ainda estivesse viva, estas séries seriam completamente diferentes, pois eu não teria tanta sede por visitar estes lugares significativos de minha infância. A dor do luto ainda é recente.

Ao observarmos uma fotografia, devemos estar conscientes de que a nossa compreensão do real será forçosamente influenciada por uma ou várias interpretações anteriores. Por mais isenta que seja à interpretação dos conteúdos fotográficos, o passado será visto sempre conforme a interpretação primeira do fotógrafo que optou por um determinado aspecto, o qual foi objeto de manipulação desde o momento da tomada de registro e ao longo de todo processamento, até a obtenção da imagem final. (KOSSOY, 2001, p.113)

Todos nós temos um porto seguro depois de um longo dia de trabalho. O meu era observar as cadeias de montanhas que compõem a Serra do Mar ao longe, azuladas, distante de nossa cidade. Uma rápida observação do alto da rodovia Padre Manoel da Nobrega, pela ciclovia, quando esta alcançava pontos altos, como os viadutos dos bairros Jardim das Laranjeiras e Cidade Anchieta e quando atravessava o Rio Itanhaém. Às quatro horas da tarde, o sol confere-lhes um brilho prateado muito especial. Quando o céu está limpo, sem nuvens, os raios solares incididos sobre elas, revelam-nos detalhes tão maravilhosos que em dias nublados em não via. As texturas das montanhas, cada uma daquelas árvores compondo uma imensa cadeia de montanhas. Gostava de sentir seus tons azuis, devido à atmosfera. Era sempre um prazer observar as sutilezas das mudanças de tons a cada conjunto de montanha, percebendo, portanto a distância de cada uma até a mim. As mais claras aquelas tingidas de um azul anil tão diluído me fazia sonhar... O que estaria acontecendo naquele lugar?  

Assim como o colecionador, o fotógrafo é animado por uma paixão que, mesmo quando aparenta ser paixão pelo presente, está ligado ao passado. [...] É acima de tudo, uma afirmação da existência do tema. Sua honestidade (a honestidade de olhar cara a cara, da ordenação de um grupo de objetos), que equivale ao padrão de autenticidade do colecionador; sua qüididade – quaisquer virtudes que o tornem único. O olhar do fotógrafo profissional, sôfrego e superiormente obstinado, é um olhar que não só resiste á classificação e à avaliação tradicionais dos temas, como busca, de forma consciente, desafiá-las e subverte-las. Por esta razão, sua abordagem do assunto em foco é bem menos aleatória do que em geral se alega. (SONTAG, 2006, p. 93)

Meu olhar também se dirigia ao céu, observar seus desenhos, suas texturas, principalmente às nuvens próximas ao sol, durante o entardecer. As que mais me encantam são as nuvens estriadas, cirros rosados esguios mostram-se depois de temporadas chuvosas, minutos, apenas minutos deste espetáculo multicolorido. Apenas instantes... E logo se voltam a acinzentar-se, logo o sol está posto e a noite vem mais uma vez.  Tudo é sempre rápido. Poucos percebem este espetáculo.

O fotógrafo é, por excelência, o artista mais rápido que existe. Essa rapidez de execução da obra de arte acrescenta uma responsabilidade enorme ao fotógrafo: captar o “momento certo”, o enquadramento perfeito, a expressão ideal. É, sem hesitações, este o maior anseio do fotógrafo-artista. A obra de arte “instantânea”, no sentido fotográfico do termo, concede a qualquer observador, a qualquer amante de arte, o grato prazer de apreciar e contemplar as diferentes “paisagens”, tal como, da mesma forma, a pintura o permite.

O fotógrafo ao “clicar” ou ao “recrear” as composições, recorrendo, neste caso último, às novas tecnologias de digitalização ou multimídia, convida o contemplador à colocação de diversas questões. À semelhança do pintor, convida o observador a refletir, a interpretar, da forma que entender a obra de arte. (TAVARES, 2009, p.7)

De acordo com o pensamento de Bresson (2004), em tudo o que olhamos no mundo, até mesmo em nosso universo pessoal, lá está um tema. Basta sermos lúcidos para tudo o que está passando e honestos face ao que sentimos face ao que estamos vendo. Nas palavras do grande fotógrafo: “Em fotografia, a menor das coisas pode ser um grande tema.” (BRESSON, 2004, p.20) Deste modo, a cada saída de casa, nos mais insignificantes caminhos, eu estava atenta a qualquer momento para obter uma boa imagem.


O fotógrafo apenas mostra os ponteiros do relógio, mas ele escolhe o instante, um lance, uma resposta, de erguer o aparelho à linha da mira do olho, prender na pequena caixa econômica o eu surpreendeu, capturar em pleno voo sem trapaças, sem deixar escapar. Faz-se pintura ao tirar-se uma foto. (BRESSON, 2004, p.41)


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