domingo, 16 de março de 2014

Patrimônio Imaterial

       


É nas festas populares que todos se reúnem nas praças centrais vestindo seus trajes mais bonitos, com os melhores sentimentos aflorados num sorriso. Mas mesmo para a comemoração de alegrias e tradições festivas a cultura popular vem perdendo seus adeptos já que os mais jovens não querem participar de cantos, músicas e teatralizações que nada se parecem com o que estão acostumados. Mesmo assim, com persistência, o caiçara sai, todos os anos, carregando um mastro, tocando um bumbo, ao som das violas e rabecas afinadas de um modo estranho aos nossos ouvidos, e vão as “bandeiras” com sua comitiva caminhando pelas ruas da cidade, entoando hinos há muito cantados. De porta em porta os festeiros se anunciam, dando as “Boas Festas” a quem os recebe. (BRANCO, 2005, p. 129)

Estas tradições festivas são reconhecidas por todo Brasil, são semelhantes, pois a herança é portuguesa. E o povo que comemora, é brasileiro. (BRANCO, 2005) Cada uma delas encontra-se diversas memórias, em que ao percorrer a rua onde se faz a procissão há tantos anos, a comunidade ali inserida rememora tantos fatos, uma saudade única, pois ali estão diversas pessoas dividindo uma mesma lembrança.

O historiador Pierre Nora definiu como “lugares de memória” (NORA, 1997) locais materiais ou imateriais nos quais se encarnam ou cristalizam as memórias de uma nação, e onde se cruzam memórias pessoais, familiares e de grupo: monumentos, uma igreja, um sabor, uma bandeira, uma árvore centenária podem constituir-se em “lugares da memória”, como espelhos, os quais, simbolicamente, um grupo social ou um povo se “reconhece” se “identifica”, mesmo que de maneira fragmentada. Estes “lugares” ou “suportes” da memória coletiva funcionam como “detonadores” de uma sequência de imagens, ideias, sensações, sentimentos, vivências individuais ou de grupo, nem processo de “revivenciamento” ou de “reconhecimento” das experiências coletivas, que tem o poder de servir como substância aglutinante entre os membros do grupo, garantindo-lhes o sentimento de “pertença” e de “identidade”, a consciência de si mesmos e dos outros que compartilham esta vivência. [...] Quanto mais ricas e diversificadas as experiências vividas e compartilhadas por um grupo de pessoas vivendo em comunidade, mais rica e complexa será esta “Memória”, ou rememoração. (HORTA in SILVA, 2008, p. 111-112)

Quando usamos o termo “Patrimônio”, estamos nos referindo às coisas consagradas as quais têm grande valor para comunidades ou nações. A ideia nos remete de acordo com Vianna in Silva (2008, p.119) à “riqueza construída e transmitida, herança ou legado que influencia o modo de ser e a identidade dos indivíduos e grupos sociais”.
Mas é uma noção relativa, pois depende de quem está falando, qual o seu ponto de vista. Podem ser sob a perspectiva afetiva, econômica, ambiental ou cultural. “Patrimônio cultural diz respeito aos conjuntos de conhecimentos e realizações de uma sociedade, que são acumulados ao longo de sua história e lhe conferem os traços de sua singularidade em relação às outras sociedades.” (VIANNA in SILVA, 2008, p. 119) Dentre ás outras espécies de animais, nós somos diferentes, pois a nossa diversidade ocorre através das inúmeras configurações socioculturais no tempo e no espaço. Pensemos na sociedade das abelhas ou formigas que são sempre idênticas, as sociedades humanas são sempre únicas, pois suas culturas também as são.
Para esta autora, devemos entender cultura os “valores, crenças, práticas e costumes; ética, estética, conhecimentos e técnicas, modos de viver e visões do mundo que orientam e dão sentido às existências individuais e coletivas humanas.” (VIANNA in SILVA, 2008, p.119) Desde o final da segunda guerra mundial têm-se discutido questões acerca do patrimônio cultural da humanidade e em 1989 houve um documento da UNESCO, “Recomendações sobre a salvaguarda do folclore e da cultura popular”. Este material enfatiza a necessidade de cooperação para tanto salvar quanto para o incentivo à transmissão destes conhecimentos e a liberdade de vivê-los e aplica-los em seu dia-a-dia.
A atual legislação brasileira segue as recomendações da UNESCO, criando nos artigos 215 e 216, da Constituição promulgada em 1988, a proteção ao Patrimônio Cultural, que abrange:

Tanto obras arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de grande valor o patrimônio material quanto manifestações de natureza “imaterial”, relacionadas à cultura no sentido antropológico: visões de mundo, memórias, relações sociais e simbólicas, saberes e práticas; experiências diversificadas nos grupos humanos, chaves das identidades sociais. Incluem-se aí as celebrações e saberes da cultura popular as festas, a religiosidade, a musicalidade e as danças, as comidas e bebidas, as artes e artesanatos, os mistérios e mitos, a literatura oral e tantas, tantas expressões diferentes que fazem nosso país tão diverso e rico. (VIANNA in SILVA, 2008, p.121)

O principal modo de preservação de patrimônio material é o tombamento, que opera no país desde a primeira metade do século XX. Já a legislação para o patrimônio imaterial é bem mais recente, datando do ano 2000, no Decreto nº 3.551 de 04 de Agosto. O modo de salvaguardá-los é o registro em livros, tais como livros de tombos e as políticas de preservação e fomento que devem ser estabelecidas. Porém, apenas a legislação não é capaz de garantir a segurança e proteção destes bens. As leis os garantem, mas ele é efetivamente preservador se houver uma vivência voluntária das pessoas da comunidade.

Os documentos engavetados, os inventários, a descrição dos bens contidos nos livros do Iphan são apenas referências dos bens, mas não dão conta dos bens em si, que tem natureza dinâmica e intangível. O patrimônio imaterial como as festas e celebrações, as músicas, a dança, a comida, saberes e técnicas próprias da cultura popular só se conservarão, efetivamente, se vividos por pessoas em condições, com garantias, liberdade e interesses em vivenciá-los de modo dinâmico e criativo. (VIANNA in SILVA, 2008, p.122)

Desta forma, esta legislação só será eficaz quando o patrimônio imaterial for amplamente conhecido por toda sociedade e estas estejam mobilizadas para estarem atuando para que ele se perpetue.
Analisando a palavra “comemorar” em sua etimologia, de acordo com Silva (2008, p.191), significa “lembrar com”. Assim, ao comemorarmos as festas populares, estamos com nossa comunidade, estaremos relembrando junto com outras pessoas aquilo que foi importante para nossa comunidade.
Assim, ao comemorar uma de nossas festas populares, estaremos relembrando e bem mais do que isto, pois:


As festas são, sobretudo, eventos e celebrações nos quais é mais claramente percebido o caráter dinâmico da cultura popular. Ao mesmo tempo em que se enraízam em cada membro do grupo social, seus valores, suas normas e suas tradições abrem espaços, continuamente para novas maneiras de representar o sentir, o ser e o viver no mundo atual, numa lenta – às vezes mesmo imperceptível, o que não dizer inexistente –  mas efetiva mudança de mentalidade. [...] Uma oportunidade para se aprender que a modernidade não precisa ser necessariamente encarada como algo ruim, dissolvente da tradição, principalmente se o novo puder ser integrado à herança recebida, passada de geração em geração pelos mestres da tradição. (SILVA, 2008, p.192)

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