domingo, 16 de março de 2014

Todos te olham, quem te vê?

É preciso aproximar-se sigilosamente como um gato, mas ter o olhar agudo, nada de atropelos, não fustiga-se a água antes de pescar. (BRESSON, 2004, p. 19)



Todos te olham, quem te vê? Foto de Thais Oliveira Silva. 07. Abr. 2012.


Na foto acima temos a imagem de um morador de rua dormindo na antiga estação de trem de Itanhaém. O que me chamou atenção foi o local por ele escolhido para ali pernoitar. O fotografei por volta das sete horas da manhã, com o coração aos saltos, temerosa que ele acordasse e tivesse alguma reação violenta. Ele está descansando já no final da antiga estação de trem, onde sua parede agora está tomada pelo grafite. Do passado restou apenas a placa indicando a antiga extensão do município: Suarão à Camboriú. O que me chamou atenção na cena são os olhos ali representados no grafite, observando este homem ou então que os olhos não são reais, estão fazendo parte de seus sonhos e pesadelos, onde tantos olhares dirigem-se a ele, mas não o percebem devidamente. As bocas cheias de dentes assustadores deste grafite também são um convite à denotação, representando toda maldade e indiferença humana voraz por dilacerar e jogar à exclusão mais uma alma.
Antes a estação era ponto de encontro... Era matar saudades, eram alegrias, despedidas... Hoje?            Bem... Apenas o esquecimento... Tanto do cenário, quanto dos atuais personagens, os moradores de rua.
Em meus trilhares por Itanhaém vi diversos tipos de pessoas, cruzei por muitas ruas; realmente vi muitos rostos. Porém alguns foram mais singulares, mais intensos, os que mais me chamaram atenção: o rosto dos excluídos sociais, os ditos moradores de rua. Os registrei em poucas imagens comparadas aos diversos encontros que tive com eles por nossas ruas. A princípio do meu processo de criação, a timidez dominou-me e não consegui fotografá-los. Foi a partir do mês de Abril de 2012 em que alcancei tal amadurecimento.
Em Março de 2012 observei durante algum tempo esta senhora. Era uma manhã fria e a vi saindo de uma padaria do centro com este saco de pão amanhecido que muitas padarias locais doam durante as manhãs. Tive muita timidez, travei-me ao fotografá-la de frente. Desejei, mas não consegui. Minha única imagem obtida desta senhora é a foto abaixo.
A condição climática deste dia, com a fina garoa que caía intensamente proporcionou à imagem uma áurea singular, como se estivéssemos despertando naquele momento, porém a imagem não pertence a um sonho bom. Não me refiro à caridade do dono da padaria, pois isso é algo admirável, mas seria melhor se todos tivessem condições financeiras para sustentaram-se.
São inúmeros. Todos os dias a população os olham. Mas, quem realmente os vê? Onde ainda reside a sensibilidade e a empatia?
            Na foto seguinte, em Abril de 2012, consegui vencer minha timidez e focalizá-los de frente, olhar em seus olhos, sentir suas reais tristezas. Estes dois homens de diferentes idades estavam sentados em frente à Igreja Matriz de Santana. Não sei quem são, de onde vieram, para onde pretendem ir. Quando os observamos, sentimos sua baixa autoestima, um alto sentimento de exclusão, de não pertencimento á nossa sociedade.




Amanhecido também sustenta. Foto de Thais Oliveira Silva. 16. Mar. 2012 



Malas prontas já ao amanhecer. Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012





Costa (2005) nos informa a respeito deste processo de exclusão, apontando suas raízes:

 A globalização e o avanço tecnológico, que têm alcançado as diferentes sociedades contemporâneas, têm gerado consequências negativas, configuradas na reprodução de desigualdades sociais e na falta de garantias sociais para grande parcela da população. Neste início do século, constata-se que a civilização, ao longo dos anos, não foi capaz de constituir um pacto que trouxesse melhorias sociais. A desigual distribuição de bens sociais, a discriminação, o desrespeito às diferenças, a incerteza, a involução de valores não são anomalias, mas constituintes do pensamento globalizado e do processo econômico em curso. (COSTA, 2005, p. 02)

Hoje em dia, de acordo com Costa (2005), as melhorias econômicas ocorridas em muitos países, já não apontam para a ampliação dos empregos, mas a diminuição da força de trabalho e infelizmente são consideradas como parte do progresso. Empregos, como antes eram compreendidos, não existem mais; “o capital já se tornou a encarnação da flexibilidade. [...] Sem empregos, há pouco espaço para a vida vivida como projeto, para planejamento de longo prazo e esperanças de longo alcance”. (CASTEL apud COSTA, 2005, p. 03)
A fragilidade das massas e, de forma mais clara, a exclusão social de grupos específicos são resultados da desagregação progressiva das proteções ligadas ao mundo do trabalho. Consistem em processos de “desfiliação”, ou do enfraquecimento dos suportes de sociabilidade.
 Para Costa (2005, p. 02): “Essa tendência encontra terreno ainda mais fértil nos países atingidos por fortes desigualdades sociais e por grande diferença nas condições de vida da população. Ou ainda, em países, como o Brasil, em que não houve uma efetiva constituição do estado de bem-estar social”.
Conforme BAUMAN apud COSTA (2005), em uma sociedade centrada no consumo, como a que estamos inseridos, há “os jogadores”, “os jogadores aspirantes” e “os jogadores incapacitados”, aqueles que não têm acesso à moeda legal. Estes devem lançar mão dos recursos para eles disponíveis, sejam legalmente reconhecidos ou não, ou optar por abandonar em definitivo o jogo.
Infelizmente, é esta a opção que resta àqueles denominados como “sobrantes”, pessoas normais, mas inválidas, devido à decorrência das novas exigências da competitividade, da concorrência e da redução de oportunidades e de emprego, fatores que constituem a situação atual, na qual não há mais lugar para todos na sociedade.

Nesse contexto, insere-se a população em situação de rua. Grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal. São homens, mulheres, jovens, famílias inteiras, grupos, que têm em sua trajetória a referência de ter realizado alguma atividade laboral, que foi importante na constituição de suas identidades sociais. Com o tempo, algum infortúnio atingiu suas vidas, seja a perda do emprego, seja o rompimento de algum laço afetivo, fazendo com que aos poucos fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, passando a utilizar o espaço da rua como sobrevivência e moradia. (COSTA, 2005, p. 03)

Como podemos perceber com a explanação de Costa (2005), a exclusão social, que passamos a conhecer, tem origens econômicas, mas caracteriza-se, também, pela falta de pertencimento social, falta de perspectivas, dificuldade de acesso à informação e perda de autoestima. Acarretam consequências na saúde geral das pessoas, em especial a saúde mental, além de relacionar-se com o mundo do tráfico de drogas.



 Qual o seu Trilhar? Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012

Na foto acima, focalizei apenas os pés de um morador de rua. Seus inúmeros cortes e feridas em seus pés nos faz pensar em seu trilhar. Por onde ele andou? O que o futuro lhe reserva?
Na foto abaixo, temos a imagem do dono dos pés captados na Figura 67. Logo pela manhã passei pelo local e o fotografei. Ele olhou para mim, aceitou ser fotografado e fechou os olhos novamente, deveria estar muito cansado. Diferente de tantos andarilhos que avisto pelas ruas, este não possuía nada. Trazia apenas a roupa do corpo. Sempre o vejo na Alameda Emídio de Souza, local muito procurado pelos pescadores, porém este homem está sempre alheio a tudo a seu redor, apenas está lá.
As pessoas em situação de rua apresentam-se com vestimentas sujas e sapatos surrados, evidenciando a fragilidade da condição de moradia na rua; no entanto, nos pertences que carregam, expressam sua individualidade e seu senso estético. A perda de vínculos familiares, decorrente do desemprego, da violência, da perda de algum ente querido, perda de autoestima, alcoolismo, envolvimento com drogas, doença mental, entre outros fatores, é o principal motivo que leva as pessoas a morarem nas ruas. São histórias de rupturas sucessivas e que, com muita frequência, estão associadas ao uso de álcool e drogas, não só pela pessoa que está na rua, mas pelos outros membros da família.



 Por enquanto, este é meu lar... Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012

É possível também encontrar na rua pessoas que há pouco chegaram às grandes cidades e ainda não conseguiram emprego ou um local de moradia. Além daqueles que possuem um trabalho ou subemprego, mas que seu ganho não é suficiente para o sustento, então eles acabam vivendo nas ruas. Outras pessoas sobrevivem nas ruas, como os catadores de resíduos recicláveis ou de outros trabalhos eventuais, e acabam dormindo em albergues e abrigos, ou em algum espaço na rua, diante da dificuldade de retorno para casa nas periferias distantes. Há, ainda, os “andarilhos”, que se deslocam pelos bairros ou de cidade em cidade, geralmente sozinhos, não se vinculando a nada. Referem simplesmente que estão “no trecho”.
Os moradores de rua com que vemos diariamente em nosso caminhar estão inseridos em algumas destas situações. Vivem num mundo em que não foi criado ou escolhido pelas pessoas que vivem nas ruas, pelo menos inicialmente, mas para o qual foram empurradas por circunstâncias alheias ao seu controle. Partilham, contudo, do mesmo destino, o de sobreviver nas ruas e becos das cidades.
Não apenas morados de rua pude registrar neste período, mas também um grupo singular de pessoas que essencialmente nos dias de feira livre, persistem em locomoverem-se para cá. São os índios das aldeias do Rio Preto e do Rio Branco, ambas afastadas de qualquer região habitada. Os registrei durante o dia 20 de Abril, o qual eu fui visitar a feira livre do centro da cidade.
Em meu percurso, não os encontrei todos unidos, eles estavam espalhados pela feira e assim, aos poucos pude recordar-me da presença constante destes em feira livre, gravados em minha memória desde a infância e certamente há bem mais tempos anteriores a ela.
Na foto abaixo está registrado meu primeiro encontro com algum deles. Logo no início da Feira do Campão avistei este pequeno menino sentado no chão. Meu olhar recaiu logo em seus pés e mãos, grossos, feridos. O registrei em diversas tomadas e percebi que havia nele um misto de curiosidade e timidez durante as captações. Fiz várias fotografias deste garoto, pois imaginei que seria apenas ele, esqueci-me que nos dias de feira livre boa parte da comunidade das aldeias indígenas está presente.
Na seguinte, já no meio de meu percurso na Feira, encontrei-me com esta simpática mulher e seu lindo bebê. O modo com que ela carregava seu filho, eu considerei tão curioso, singular. Apesar do forte calor desta manhã que logo se aproximava do meio dia, o bebê dormia tranquilamente envolto a estes panos.

Primeiro Encontro. Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012 



Mamãe Orgulhosa com seu Bebê. Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012





Afastados da Feira livre, encontrei este grupo de curumins sorridentes e curiosos em frente ao antigo Mercado Municipal. De todos os encontros, estes garotinhos mostraram-se mais curiosos, falantes. Postaram-se em diversas posições, sorriam efusivamente para a câmera, tendo até mesmo um deles o ímpeto de pedir a câmera para tentar fotografar também. Aprecio esta imagem, pois cada um deles possui uma feição diferente, um olhar, um sorriso único.


Curumins. Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012





Porém a figura que mais me chamou atenção, sem sombra de dúvidas foi a desta garotinha, em que vemos abaixo; este olhar é poderoso, foi pungente pra mim, pois sei que estou de mãos atadas... Não posso ajudá-la em curto prazo... A força que ele transmite é demais... É evidente a falta de cuidados e mimos à indiazinha, em suas roupas grandes e surradas, em seus pezinhos descalços. A garotinha estava entre o pai e a mãe... Os três estavam sentados no chão... Vendendo Palmito, esperando doações... Doações? Não precisavam de doações... Eles foram os que nos cederam esta bela terra... Espontaneamente? Receio que não...
             Esta série fotográfica eu ousei fazê-la a fim de lembrar a todo o momento à sociedade desta presença muitas vezes não desejada, mas de uma forma ou de outra existente. Quer a sociedade queira ou não.   “Os “excluídos” estão lá, na fratura de seu cotidiano, no cotidiano impossível em sociedades e situações em que a repetição é a negação da reprodução e da possibilidade da vida cotidiana”. (MARTINS, 2008, p.51)



Devolvam minha terra! Foto de Thais Oliveira Silva. 20. Abr. 2012



O que faz a força deste olhar é sua pureza, típico de um olhar de criança combinado infelizmente com um olhar de adulto, de quem já viu muito e não merece viver assim!...Como se fosse uma criança que cedo demais está a desistir dos seus sonhos!... Tornando-se adulta ainda em criança!
Um olhar dirigido a nós adultos e que nos está perguntando: Por quê?...
Um retrato com o olhar mais intenso que já vi!          
Mais uma vez parabéns Thais, quando uma foto consegue transmitir uma emoção e mensagem tão forte, tudo o que diz respeito ao aspecto técnico é bobagem!... E isso já vem do tempo dos primeiros mestres da fotografia!!!     
Se uma foto só é bela pela sua "perfeição" técnica, depressa será esquecida, uma foto como a sua nunca!
(PEREIRA, João Evangelista Dos Santos. JEvangelista. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por < jespcl3@yahoo.fr> em 07. Jun. 2012.





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