sábado, 15 de março de 2014

Indelével herança caiçara

Chão caiçara
Caminhos que vamos trilhar
Saboreando em descobertas
O jeito de ser e viver do povo praiano
Que ainda existe sem que percebamos
Mas que está aí para nos ensinar
A amar e a cuidar da nossa terra
Acentuando os caminhos
Ao encontro das nossas raízes,
Da nossa história!

(Ana Maria Ferreira. In: Itanhaém, um Mar de Histórias. Expoente: Itanhaém, 2008)

As histórias das pessoas contam a história de Itanhaém. Estas histórias se entrelaçam se misturam e se fundem formando um tecido com cheiro de mar e gosto de comida caiçara, música, poesia e esperança.
            Esperança de que a brisa marítima espalhe pelos ares a nossa história de raiz, que conte para quem chega ou não conhece que aqui vive uma gente simples, hospitaleira, cheia de fé, que gosta de lembrar em relatos como viviam aqui. Tanta gente, tanta história, tanta saudade! Gente com a mesma herança: a cultura caiçara. E o levar no sangue as primeiras marcas de miscigenação aqui no Brasil: do indígena do litoral com o colonizador português. (BRANCO, 2005)
            Encontramos como característica dessa gente o jeito simples e por que não dizer poético de ser; é um povo simples, que trabalha duro de sol a sol, e tem a lua como referência para plantar, pescar, caçar. Usa o mar com sabedoria para a sua alimentação e faz dele seu meio de sobrevivência. Na mata busca os seus remédios naturais e é na areia da planície litorânea que produz e cultiva sua lavoura, extraindo dos solos da restinga o seu alimento.
            Entretanto, a autora nos lembra de que a palavra “cultura” carrega inúmeros preconceitos, que se estendem desde a significação elitista, de uma pessoa com estudo, culta, até a comparação de determinados graus de manifestação cultura de um povo, tendo como referência a cultura europeia, dita erudita. Deste modo, “a cultura caiçara, como a de outros grupos que permaneceram à margem do desenvolvimento intelectual nacional, é referida com maior travo de subalternidade.” (BRANCO, 2005, p.21) Tanto que seus herdeiros muitas vezes recusam o termo “caiçara” por pejorativo, tendo-o como “caipira, matuto, homem ordinário, malandro e vagabundo” – são estes os significados mais comumente encontrados nos dicionários brasileiros. Segundo a análise da autora, este fato ocorreu devido o desenvolvimento do país.
 A própria história nacional encarregou-se de traçar um modelo unificado de comportamento para toda população na medida em que se foram expandindo as instituições escolares, de saúde, medidas judiciárias e principalmente os meios de comunicação, com enfoque na televisão, esta que tem um enorme poder de padronizar populações de norte a sul do país (BRANCO 2005). Se pudermos mencionar a grande falha cometida em relação à cultura caiçara é que esta é na visão da autora, em comparação às outras culturas de nosso país é pouco estudada e por isso tem sido vítima de preconceitos até mesmo de seus próprios herdeiros.


Os dicionários explicam a origem da palavra caiçara (“kaai´as”, segundo Houaiss, 2000) que significa “cerca de ramos para vedar o trânsito”. [...] O termo foi aplicado aos que viviam junto às praias, em economia de subsistência baseada na pesca, extração de palmitos e alguns frutos silvestres e uma fraca agricultura onde predominavam os roçados de mandioca, milho, arroz, fazendo uso tanto do entrelaçado de ramos na construção como no preparo das armadilhas para pescar e caçar e na proteção do solo cultivado sobre o qual deixavam parte das árvores derrubadas. O benefício deste uso é o aporte de alguma sombra e adubo no solo por conta do apodrecimento das folhas e da madeira – é a roça de tocos ou coivara. (BRANCO, 2005, p.22)



Caiçara. Foto de Thais Oliveira Silva. 06. Mai. 2012.



Na Foto Caiçara, observamos o cercado da casa de uma família caiçara tradicional do Bairro do Rio Acima, onde ainda guardam inúmeras tradições. Podemos encontrar a população caiçara em toda costa dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná a Santa Catarina. Tanto pelos traços físicos, como os culturais, revelam a miscigenação do índio com o português.
             A religião predominante é a católica, proveniente da tradição portuguesa, o ato de ajuda mútua, o mutirão é um costume europeu trazido para cá e até hoje preservados em comunidades caiçaras. Já a construção da habitação, as técnicas agrícolas e artesanais para a confecção de produtos domésticos, inclusive receitas culinárias e medicinais revelam a contribuição indígena para esta cultura. Sobre a contribuição lusitana, Branco (2005) ainda nos informa: “A origem europeia desta população notava-se na cor dos olhos, claros, nos conhecimentos técnicos – pesca carpintaria, marcenaria; o sangue indígena estava presente no manejo da terra e da mata, nas táticas de sobrevivência, nas crenças.” (BRANCO, 2005, p.27)
O caiçara é o povo praiano que em perfeita harmonia com o meio que o cerca, usando o mar como “mercearia e geladeira”, coletando na mata todos os seus medicamentos, cultivando a terra litorânea, fazendo-a produzir a contento apesar da muita areia e pouca fertilidade dos solos da restinga.
Através de sua criatividade e habilidade, o caiçara se moldou ao meio sem grandes conflitos ambientais. “Convivendo com a Mata Atlântica, o caiçara recuperou antigos conhecimentos indígenas sobre o uso das plantas, medicinais e alimentares, aprimorou a técnica do entalhe em madeira para construção de canoas e casas de moradia.” (BRANCO, 2005, p.28)
Todas estas características acompanham o nosso modo de viver, nós, descendentes de caiçaras, nós que, na maioria, não vivemos mais em comunidades ribeirinhas ou praianas, mas que temos ascendentes familiares ou até mesmo influência indireta de outras pessoas vinda a nós como a maresia cobre nosso ar.
A mim esta influência chegou através de minha avó. Seu nome era Gloria Silva Oliveira (1934 – 2011), mas era conhecida por todos como Glorinha. Eu e meus irmãos a chamávamos de Góia e devo a ela tudo o que sei e sou. Minha avó nasceu em Iguape, uma cidade caiçara e deveras antiga do Brasil, mas seu pai é daqui de Itanhaém mesmo. Sua mãe, minha bisavó que era desta cidade; deste modo ela passou infância e começo da juventude nas duas cidades, absorvendo costumes das duas comunidades caiçaras do litoral sul. Porém, antes de completar a maioridade ela mudou-se para São Paulo, para trabalhar como empregada doméstica, morando nestas casas. Parou apenas quando se casou e ainda permaneceu em São Paulo. As suas férias de verão eram passadas aqui em sua terra tão amada, mas sempre retornava para a capital.
Contudo, após muitos anos, o casamento desfez-se e finalmente minha avó voltou para Itanhaém. Ela amava esta terra, possuía uma admirável disposição para percorrer toda esta cidade a pé, uma herança caiçara (FERREIRA, 2008) a qual eu também herdei. Minha mãe também se mudou para cá após seu casamento romperem-se anos após. Como ela ainda era jovem e com três crianças para criar sozinha, ela resolveu mudar-se para perto de sua mãe.
Em nossa infância, a figura de minha avó esteve muito presente em minha vida e na de meus dois irmãos. Minha mãe trabalhava durante o dia e ela cuidava de nós. Recebemos a herança caiçara a cada dia de maneira prazerosa. Como era gostoso viver deste modo!
Minha avó era católica fervorosa, sempre ia às missas de domingo, participava das festas religiosas da cidade, como a festa do divino e a do reisado e eu quando criança não entendia todo este processo. Era belo, mas não compreensível pra mim. A festa do Divino é um momento muito especial para a cidade, onde lindas bandeiras vermelhas são espalhadas pela praça. Há a Casa do Império, há o Imperador, sua Imperatriz e o Capitão do Mastro. Deste simbolismo todo, em minha inocência, apenas pensava “como é lindo! Parece um conto de fadas! Olha que lindo o vestido da imperatriz”, mas sempre ia vê-los, pelo menos em minha infância, quando era minha avó que decidiam quais seriam meus passeios. E realmente eram fantásticos!
 Eu estudava de manhã e não via a hora de ir logo pra casa, almoçar e sair para passear com minha avó. Como éramos bastante humildes, íamos sempre a pé. Íamos até a praia deste modo, não apenas na que era na reta de nossa casa, mas nas que certamente lembravam a juventude de minha avó, praia do centro, dos pescadores, boca da barra, creio que ela queria compartilhar de seus “jardins secretos” conosco. Gostava também de andar a pé pela linha do trem, gostava de sentir adrenalina a mil, pois se o trem viesse e ainda estivéssemos na ponte, ela tremeria... Aquela ponte toda enferrujada que temo até hoje, a qual guarda tantas lembranças...
 Na fotografia abaixo podemos ver o registro que fiz dela onde pretendi enfocar a vertigem e o medo que me causava. Certamente a lembrança mais forte é a da queda da ponte, em plenas nove horas da manhã num dia até aquele momento tranquilo de 1946. Meu irmão mais velho que era muito levado comigo sempre ficava me pondo medo quando minha avó nos contava este fato que se misturou a fantasia quando acrescentou que até hoje mora um Mero de 12 metros em um dos vagões submersos do trem acidentado de outrora. Hoje eu percebo o valor destas histórias ouvidas no lugar ocorrido, tantos e tantos quilômetros que andávamos a pé... Não foram em vão... Como não tínhamos dinheiro para comprar lanches, ela fazia bolinhos de fubá ou banana verde frita para comermos no caminho e era tão bom! Passamos por tanta dificuldade financeira, mas por sua infinita sabedoria caiçara, ela não deixou que isso nos abatesse, pois a vida em liberdade e a simplicidade eram mais importantes. Esta lição eu nunca me esqueci.

Longo Caminho Vertiginoso. Foto de Thais Oliveira Silva, 18. Mar. 2012.




Branco (2005), sobre a carência desenvolvida entre estes, declara:
“A vida das populações caiçaras é, acima de tudo, uma história de sofrimento e sobrevivência extremamente difícil onde estavam sempre presentes a fome, a subnutrição e um rol de doenças fatais.” (BRANCO, 2005, p. 27) Quando eu saía com a “Góia”, minha avó, eu ia observando tudo, todo meu caminhar com muito cuidado. Adorava o mar, seu odor característico, o contato das ondas com meu corpo e bem mais do que isto, gostava de vê-lo... Tinha um enorme desejo de fotografá-lo.
 Adorava-o, porém não tinha condições financeiras ter uma câmera fotográfica, sempre que via algo agradável, pensava: “que bela imagem isto seria...” Às vezes me entristecia, pois quando passávamos por necessidades em minha casa chegava a pensar que nunca teria esta chance. Ao completar treze anos, minha mãe me deu uma câmera analógica compacta, mas foram poucas fotos reveladas, eram realmente inacessíveis naquele tempo os gastos com filmes e revelações, por isso eu apenas brincava de fotografar. Este aspecto lúdico foi muito bom para meu desenvolvimento hoje, pois todas as composições que eu sempre quis eternizar durante este tempo, agora eu estou concretizando. Lembranças, vivências e sentimentos de mais de vinte anos de trilhares por este chão caiçara estão infundidos em minhas imagens. 




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