Chão caiçara
Caminhos que vamos
trilhar
Saboreando em
descobertas
O jeito de ser e
viver do povo praiano
Que ainda existe sem
que percebamos
Mas que está aí para
nos ensinar
A amar e a cuidar da
nossa terra
Acentuando os
caminhos
Ao encontro das
nossas raízes,
Da nossa história!
(Ana Maria Ferreira.
In: Itanhaém, um Mar de Histórias. Expoente:
Itanhaém, 2008)
As
histórias das pessoas contam a história de Itanhaém. Estas histórias se
entrelaçam se misturam e se fundem formando um tecido com cheiro de mar e gosto
de comida caiçara, música, poesia e esperança.
Esperança de que a brisa marítima
espalhe pelos ares a nossa história de raiz, que conte para quem chega ou não
conhece que aqui vive uma gente simples, hospitaleira, cheia de fé, que gosta
de lembrar em relatos como viviam aqui. Tanta gente, tanta história, tanta
saudade! Gente com a mesma herança: a cultura caiçara. E o levar no sangue as
primeiras marcas de miscigenação aqui no Brasil: do indígena do litoral com o
colonizador português. (BRANCO, 2005)
Encontramos como característica
dessa gente o jeito simples e por que não dizer poético de ser; é um povo
simples, que trabalha duro de sol a sol, e tem a lua como referência para
plantar, pescar, caçar. Usa o mar com sabedoria para a sua alimentação e faz
dele seu meio de sobrevivência. Na mata busca os seus remédios naturais e é na
areia da planície litorânea que produz e cultiva sua lavoura, extraindo dos
solos da restinga o seu alimento.
Entretanto, a autora nos lembra de
que a palavra “cultura” carrega inúmeros preconceitos, que se estendem desde a
significação elitista, de uma pessoa com estudo, culta, até a comparação de
determinados graus de manifestação cultura de um povo, tendo como referência a
cultura europeia, dita erudita. Deste modo, “a cultura caiçara, como a de
outros grupos que permaneceram à margem do desenvolvimento intelectual nacional,
é referida com maior travo de subalternidade.” (BRANCO, 2005, p.21) Tanto que
seus herdeiros muitas vezes recusam o termo “caiçara” por pejorativo, tendo-o
como “caipira, matuto, homem ordinário, malandro e vagabundo” – são estes os
significados mais comumente encontrados nos dicionários brasileiros. Segundo a
análise da autora, este fato ocorreu devido o desenvolvimento do país.
A própria história nacional encarregou-se de
traçar um modelo unificado de comportamento para toda população na medida em que
se foram expandindo as instituições escolares, de saúde, medidas judiciárias e
principalmente os meios de comunicação, com enfoque na televisão, esta que tem
um enorme poder de padronizar populações de norte a sul do país (BRANCO 2005).
Se pudermos mencionar a grande falha cometida em relação à cultura caiçara é
que esta é na visão da autora, em comparação às outras culturas de nosso país é
pouco estudada e por isso tem sido vítima de preconceitos até mesmo de seus
próprios herdeiros.
Os
dicionários explicam a origem da palavra caiçara (“kaai´as”, segundo Houaiss,
2000) que significa “cerca de ramos para vedar o trânsito”. [...] O termo foi
aplicado aos que viviam junto às praias, em economia de subsistência baseada na
pesca, extração de palmitos e alguns frutos silvestres e uma fraca agricultura
onde predominavam os roçados de mandioca, milho, arroz, fazendo uso tanto do
entrelaçado de ramos na construção como no preparo das armadilhas para pescar e
caçar e na proteção do solo cultivado sobre o qual deixavam parte das árvores
derrubadas. O benefício deste uso é o aporte de alguma sombra e adubo no solo
por conta do apodrecimento das folhas e da madeira – é a roça de tocos ou
coivara. (BRANCO, 2005, p.22)
Caiçara. Foto de Thais
Oliveira Silva. 06. Mai. 2012.
Na Foto Caiçara, observamos o cercado da casa de uma família caiçara tradicional do Bairro do
Rio Acima, onde ainda guardam inúmeras tradições. Podemos encontrar a população
caiçara em toda costa dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná a Santa
Catarina. Tanto pelos traços físicos, como os culturais, revelam a miscigenação
do índio com o português.
A religião predominante é a católica,
proveniente da tradição portuguesa, o ato de ajuda mútua, o mutirão é um
costume europeu trazido para cá e até hoje preservados em comunidades caiçaras.
Já a construção da habitação, as técnicas agrícolas e artesanais para a
confecção de produtos domésticos, inclusive receitas culinárias e medicinais
revelam a contribuição indígena para esta cultura. Sobre a contribuição
lusitana, Branco (2005) ainda nos informa: “A origem europeia desta população
notava-se na cor dos olhos, claros, nos conhecimentos técnicos – pesca
carpintaria, marcenaria; o sangue indígena estava presente no manejo da terra e
da mata, nas táticas de sobrevivência, nas crenças.” (BRANCO, 2005, p.27)
O
caiçara é o povo praiano que em perfeita harmonia com o meio que o cerca,
usando o mar como “mercearia e geladeira”, coletando na mata todos os seus
medicamentos, cultivando a terra litorânea, fazendo-a produzir a contento
apesar da muita areia e pouca fertilidade dos solos da restinga.
Através
de sua criatividade e habilidade, o caiçara se moldou ao meio sem grandes
conflitos ambientais. “Convivendo com a Mata Atlântica, o caiçara recuperou
antigos conhecimentos indígenas sobre o uso das plantas, medicinais e
alimentares, aprimorou a técnica do entalhe em madeira para construção de
canoas e casas de moradia.” (BRANCO, 2005, p.28)
Todas
estas características acompanham o nosso modo de viver, nós, descendentes de
caiçaras, nós que, na maioria, não vivemos mais em comunidades ribeirinhas ou
praianas, mas que temos ascendentes familiares ou até mesmo influência indireta
de outras pessoas vinda a nós como a maresia cobre nosso ar.
A
mim esta influência chegou através de minha avó. Seu nome era Gloria Silva
Oliveira (1934 – 2011), mas era conhecida por todos como Glorinha. Eu e meus
irmãos a chamávamos de Góia e devo a ela tudo o que sei e sou. Minha avó nasceu
em Iguape, uma cidade caiçara e deveras antiga do Brasil, mas seu pai é daqui
de Itanhaém mesmo. Sua mãe, minha bisavó que era desta cidade; deste modo ela
passou infância e começo da juventude nas duas cidades, absorvendo costumes das
duas comunidades caiçaras do litoral sul. Porém, antes de completar a
maioridade ela mudou-se para São Paulo, para trabalhar como empregada
doméstica, morando nestas casas. Parou apenas quando se casou e ainda
permaneceu em São Paulo. As suas férias de verão eram passadas aqui em sua
terra tão amada, mas sempre retornava para a capital.
Contudo,
após muitos anos, o casamento desfez-se e finalmente minha avó voltou para
Itanhaém. Ela amava esta terra, possuía uma admirável disposição para percorrer
toda esta cidade a pé, uma herança caiçara (FERREIRA, 2008) a qual eu também
herdei. Minha mãe também se mudou para cá após seu casamento romperem-se anos
após. Como ela ainda era jovem e com três crianças para criar sozinha, ela
resolveu mudar-se para perto de sua mãe.
Em
nossa infância, a figura de minha avó esteve muito presente em minha vida e na
de meus dois irmãos. Minha mãe trabalhava durante o dia e ela cuidava de nós.
Recebemos
a herança caiçara a cada dia de maneira prazerosa. Como era gostoso viver deste
modo!
Minha
avó era católica fervorosa, sempre ia às missas de domingo, participava das
festas religiosas da cidade, como a festa do divino e a do reisado e eu quando
criança não entendia todo este processo. Era belo, mas não compreensível pra
mim. A festa do Divino é um momento muito especial para a cidade, onde lindas
bandeiras vermelhas são espalhadas pela praça. Há a Casa do Império, há o
Imperador, sua Imperatriz e o Capitão do Mastro. Deste simbolismo todo, em
minha inocência, apenas pensava “como é lindo! Parece um conto de fadas! Olha
que lindo o vestido da imperatriz”, mas sempre ia vê-los, pelo menos em minha
infância, quando era minha avó que decidiam quais seriam meus passeios. E
realmente eram fantásticos!
Eu estudava de manhã e não via a hora de ir
logo pra casa, almoçar e sair para passear com minha avó. Como éramos bastante
humildes, íamos sempre a pé. Íamos até a praia deste modo, não apenas na que
era na reta de nossa casa, mas nas que certamente lembravam a juventude de
minha avó, praia do centro, dos pescadores, boca da barra, creio que ela queria
compartilhar de seus “jardins secretos” conosco. Gostava também de andar a pé
pela linha do trem, gostava de sentir adrenalina a mil, pois se o trem viesse e
ainda estivéssemos na ponte, ela tremeria... Aquela ponte toda enferrujada que
temo até hoje, a qual guarda tantas lembranças...
Na fotografia abaixo podemos ver o registro que fiz
dela onde pretendi enfocar a vertigem e o medo que me causava. Certamente a
lembrança mais forte é a da queda da ponte, em plenas nove horas da manhã num
dia até aquele momento tranquilo de 1946. Meu irmão mais velho que era muito
levado comigo sempre ficava me pondo medo quando minha avó nos contava este
fato que se misturou a fantasia quando acrescentou que até hoje mora um Mero de
12 metros em um dos vagões submersos do trem acidentado de outrora. Hoje eu
percebo o valor destas histórias ouvidas no lugar ocorrido, tantos e tantos
quilômetros que andávamos a pé... Não foram em vão... Como não tínhamos
dinheiro para comprar lanches, ela fazia bolinhos de fubá ou banana verde frita
para comermos no caminho e era tão bom! Passamos por tanta dificuldade
financeira, mas por sua infinita sabedoria caiçara, ela não deixou que isso nos
abatesse, pois a vida em liberdade e a simplicidade eram mais importantes. Esta
lição eu nunca me esqueci.
Longo Caminho
Vertiginoso. Foto de Thais Oliveira Silva, 18. Mar. 2012.
Branco
(2005), sobre a carência desenvolvida entre estes, declara:
“A
vida das populações caiçaras é, acima de tudo, uma história de sofrimento e
sobrevivência extremamente difícil onde estavam sempre presentes a fome, a
subnutrição e um rol de doenças fatais.” (BRANCO, 2005, p. 27) Quando eu saía
com a “Góia”, minha avó, eu ia observando tudo, todo meu caminhar com muito
cuidado. Adorava o mar, seu odor característico, o contato das ondas com meu
corpo e bem mais do que isto, gostava de vê-lo... Tinha um enorme desejo de
fotografá-lo.
Adorava-o, porém não tinha condições financeiras
ter uma câmera fotográfica, sempre que via algo agradável, pensava: “que bela
imagem isto seria...” Às vezes me entristecia, pois quando passávamos por
necessidades em minha casa chegava a pensar que nunca teria esta chance. Ao
completar treze anos, minha mãe me deu uma câmera analógica compacta, mas foram
poucas fotos reveladas, eram realmente inacessíveis naquele tempo os gastos com
filmes e revelações, por isso eu apenas brincava de fotografar. Este aspecto
lúdico foi muito bom para meu desenvolvimento hoje, pois todas as composições
que eu sempre quis eternizar durante este tempo, agora eu estou concretizando.
Lembranças, vivências e sentimentos de mais de vinte anos de trilhares por este
chão caiçara estão infundidos em minhas imagens.
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