sábado, 15 de março de 2014

Fotografia e memória

“Toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si mesmo um fragmento determinado da realidade registrado fotograficamente”. (MARTINS, 2001, p.45)

Na atualidade, a fotografia tornou-se um passatempo quase tão difuso quanto o sexo e a dança. Porém isto não significa que ela seja praticada assiduamente pela grande massa como uma forma de arte, mas sim como um rito social, uma proteção contra a ansiedade, como um instrumento de poder. Em sua observação, as famílias são acompanhadas pelas câmeras, sobretudo as famílias de classe média alta e bem menos pela classe baixa (MARTINS, 2008). O ato de não tirar fotografias dos filhos, sobretudo quando estão ainda são pequenos, é tido como um gesto de indiferença da parte dos pais assim como não comparecer à fotografia de formatura, um sinal de rebeldia juvenil. (SONTAG, 2006)
Através das fotografias, cada família constrói uma crônica visual de si mesma, de acordo com Sontag (2006), tornando-se um rito de vida em família exatamente quando esta está se fragmentando. É a presença silenciosa de alguém já ausente, sendo “inevitável a emoção diante da fotografia”. (MARTINS, 2008, p. 45) Principalmente pelas ausências de hoje em dia lá presentes. Os mortos reais e simbólicos, como os pais que se separaram e distanciaram-se da família, a namorada ou o namorado que não é mais, o amigo que deixou de sê-lo. Neste contexto, ela se torna não como um mero fragmento de imagem, mas se propõe como “memória dos dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do impossível, do que não ficou e não retornará.” (MARTINS, 2008, p. 45). Cada família terá sua “caixa de sapato” onde irá guardar suas lembranças emocionadas, onde ilustram suas histórias de vida, o consagrado “álbum de família”. (SILVA, 2008)
Alguém conhece um exercício melhor para reviver o passado que a apreciação de nossas próprias fotografias? Vendo-as, o homem reflexe sobre a importância que a fotografia tem em nossas vidas. Kossoy (2001, p.100) acrescenta que: “quando o homem vê a si mesmo através de velhos álbuns, ele se emociona, pois percebe que o tempo passou e a noção de passado se lhe torna de fato concreta. [...] estamos envolvidos afetivamente com os conteúdos daquelas imagens.” Estas fotografias nos dizem muito a nosso respeito, de como éramos, de como eram nossos familiares e amigos.
Em nossa imaginação reconstruímos a trama dos acontecimentos dos quais atuamos em diferentes épocas e lugares. Nas palavras de Kossoy (2001, p.100), “Essas imagens nos levam ao passado numa fração de segundo. [...] Através das fotografias reconstruímos nossas trajetórias ao longo da vida” Diante destes fragmentos interrompidos de vida, que muitas vezes revemos, uma insuportável, irremediável e até mesmo constrangedora fonte de recordação e emoção. Entretanto, deve-se saber que:

A fotografia é uma das grandes expressões da desumanização do homem contemporâneo, sobretudo porque permitiu a separação cotidiana da pessoa em relação à sua imagem. Não é incomum que, com o passar do tempo, ou com a distância, os amantes amem a pessoa que está na fotografia e percam de vista e de afeto a pessoa que se deixou fotografar. (MARTINS, 2008, p. 23)

Atualmente existem outros meios para se registrar cenas, como a filmagem, mas neste caso, ela é o fluxo contínuo de imagens pouco selecionadas, em que cada uma delas cancela a precedente. Já a fotografia é um momento privilegiado, convertido num pequeno objeto que as pessoas podem guardar e olharem quantas vezes desejarem. (SONTAG, 2006) Com toda nostalgia de nosso tempo, colecionamos compulsivamente imagens de momentos inesquecíveis, pois sabemos que ele não será eterno.

Quando temos medo, atiramos, mas quando ficamos nostálgicos, tiramos fotos. [...] Ao fotografar, participamos da mortalidade, de toda nossa vulnerabilidade e mutabilidade das relações humanas e do espaço físico, estamos com foto, testemunhando a dissolução implacável e irreversível do tempo ao cortar uma fatia deste momento e congelá-la”. (SONTAG, 2006, p. 26-27)

Melancolicamente sabemos que a cena registrada ali na imagem não se repetirá jamais. Aquele momento vivido e congelado pela fotografia é sem retorno. Ai está a razão pela qual muitos de nós valorizamos intensamente mais a imagem fotográfica do que um registro escrito. A canção abaixo traduz este pensamento:

“Rasgue as minhas cartas
E não me procure mais
Assim será melhor
Meu bem!
O retrato que eu te dei
Se ainda tens
Não sei!
Mas se tiver
Devolva-me!”
[...]
 Adriana Calcanhotto. Devolva-Me. In: Público. Renato Barros e Lilian Knapp. Rio de Janeiro, SONY, 2000.
Sotilo (2006, p. 01) a descreve como memória fixa num tempo, mas que retoma o seu movimento, a sua animação ao ser observada neste ato rememorativo. “Registro este que abriga certo “recorte espacial” e uma “interrupção temporal”, fazendo-nos construir realidades diversas”.
Podemos dizer que a fotografia se tornou um mecanismo aliviador da memória, já que compartilhamos com ela alguns momentos significativos os quais podemos deixar registrados no papel fotográfico, e sempre que quisermos lembrar-nos do fato voltamos à imagem. Podemos ter como exemplo com o fato de que quando viajamos, registramos cada impressão da experiência, sendo impossível de ser armazenada em sua plenitude, mas a fotografia acaba por dar este suporte detalhado destes momentos o qual nossa memória não suportaria. (SONTAG, 2006)
Koury (2008), a respeito do registro fotográfico acrescenta:

Duplo do real, a fotografia é apresentada como o real reproduzido. Como uma cópia que tem o poder de apropriar o real referenciado pela fixidez intemporal de sua ação. Como passado em revelação para o olhar que observa, a fotografia parece realizar sua utopia de produtora da memória. (KOURY, 2008, p.102)

A memória é então informada pela fotografia, indicando momentos insubstituíveis que constroem uma vida para si e para os outros. Como uma ausência permanentemente prisioneira de um presente que já aconteceu, como portadora no presente de um registro que já foi, a fotografia parece estabelecer as bases necessárias à exclusão do referente, pela sua inclusão fixada nos registros que cada foto revela.
A industrialização praticada em larga escala possibilitou a popularidade da fotografia, contudo esta perdendo sua qualidade artística. Com o advento cada vez mais crescente “tirar” fotografias tornou-se hábito das famílias, de acordo com Andrade (2002, p.49), eternizando momentos de festas, aniversários, casamentos, viagens, batizados. E prossegue afirmando: “Todas estas imagens nos levam a resgatar o prazer do instante, do momento presente e do ausente, daquilo que passou, mas permanece na memória.” Deste modo, tiramos fotografia para nos apropriar do objeto, do momento que desaparecerá. Existe, uma magia no momento que imortalizamos as pessoas e o tempo nas fotos. Para tribos urbanas, fotografias são: “como provas de sua existência, de sua identidade e história.” (ANDRADE, 2002, p.49)
De acordo com o pensamento da autora, cada fotografia detém uma presença. As evocamos ao guardar em nossas carteiras, em nossas casas imagens de nossa família, de animais, de santos, de nossos ídolos para fazer presente o que está ausente. Andrade (2002, p.49) afirma que: “nossa identidade individual depende da memória – e a fotografia é uma atividade fundamental para o contorno dessa identidade, seja para autoafirmação, seja para o conhecimento.”
Tanto olhar fotografias como captá-las é semelhante a congelar por instantes o tempo. E é aí que reside seu encantamento, o fascínio no momento do clique. “O ato de acionar o botão de uma máquina fotográfica é o único em que o tempo interno está de acordo com o tempo externo.” (ANDRADE, 2002, p 50)
Barthes apud Andrade (2002) afirma: “Aquilo que a fotografia reproduz até o infinito só aconteceu uma vez: ela repete magicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.” (p. 50) Deste modo podemos perceber o real motivo desta necessidade compulsiva de a cada dia pessoas registrarem momentos felizes de suas vidas em fotografias, temerosos de tê-los em mãos apenas o registro, mas ao mesmo tempo não viver o momento novamente.

Assim, ao refletir sobre um passado que se foi e que permanece na intemporalidade fria da foto, referencia a própria fotografia como ilusão da manutenção dos momentos queridos eternamente presentes. Cria, ao mesmo tempo, o vazio da fixidez que pode ser tocada, acariciada, observada, mas que permanece como não sendo o objeto do desejo. (KOURY, 2008, p.102)

A fotografia vista como lembrança, fomenta no olhar que vê um resumo da memória pessoal. A imagem significa gestos, atos e sentimentos, construindo redes de significados que singularizam a lembrança pelo ato emocionado que provoca no observador. Pela cumplicidade que se estabelece entre aquele que observa e aquele que a foto representa, referenciado e fixo na ausência presente de um tempo e de um espaço que não mais existem, embora continuem a existir na realidade da foto. (KOURY, 2008)
Sotilo (2006), fala sobre este ato do fotógrafo de fixar o tempo e a época deixando um registro do presente, em que no instante fotografado torna-se passado, fotografar a nossa trajetória de vida é um mecanismo contra o medo do desaparecimento e a necessidade de preservar se faz presente neste ritual.
Esses instantes são retomados no momento em que se abrem os álbuns de fotografia, eles são suportes que torna presente essa ausência, essa transitoriedade. Dentro deste universo, manusear, olhar, recordar essas imagens torna-se um ato ritualístico, “sendo este a presentificação de um momento significativo, e que se atualiza no discurso”. (SOTILO, 2006, p.3) A saudade, este sentimento nostálgico, pode nos levar á fotografia, mas também a própria necessidade de pertencimento, enfatiza a importância que esses laços afetivos têm em nossas vidas nos levando a contemplá-las. “Podemos dizer que esses sentimentos sempre perseguiram e atormentaram o ser humano, o medo do esquecimento, de não eternizar uma história, de tudo terminar, de ter o seu fim, a morte”. (SOTILO, 2006, p.6).
A fotografia dribla a morte e a solidão do sujeito que observa pela sensação de “onipotência do possuir recortes fixos de um real comprovadamente e intemporalmente existente, na realidade da foto; a foto torna-se o referente de si mesma”. (KOURY, 2008, p.106) Pensemos em nossos momentos que uma simples olhada numa fotografia nos anima, retendo no papel o momento de felicidade ali impresso. Lá estávamos com pessoas queridas, podemos retornar a tais sentimentos vividos naquele momento só do fato de observarmos nossas fotografias.

Evocada, a foto realiza o anseio de trazer situações e mantê-las sob controle, na imobilidade eterna registrada e apreendida pelo ato fotográfico. O que provoca uma sensação de poder e de posse sobre o outro ou sobre o si mesmo registrado, ao mesmo tempo em que onipotencializa as relações do observador com as imagens reveladas e por ele possuídas. (KOURY, 2008, p.103)

A fotografia é manuseada em momentos de busca de afetos, positivos ou negativos, “que recomenda para situações felizes ou não tanto, mas, próximas da felicidade na distância que as fotos aproximam sem, contudo, trazê-las de volta [...] O que permite consolo ou tormento em quem se debruça nas impressões que a foto trás”. (KOURY, 2008, p.103)

Toda fotografia representa em seu conteúdo uma interrupção do tempo e, portanto da vida. O fragmento selecionado do real, a partir do instante em que foi registrado, permanecerá para sempre interrompido e isolado na bidimensão da superfície sensível. [...] Sem antes nem depois; este é um dos aspectos mais fascinantes em termos do instante contínuo recortado da vida que se confunde com o nascimento do descontínuo do documento. (KOSSOY, 2001, p.44)

Tal instante recortado do cotidiano fica ali aprisionado no papel fotográfico, congelando aqueles sorrisos familiares eternamente. O ato de fotografar tais momentos felizes nada mais é do que para nos momentos tristes que todos nós passamos durante a vida, podemos retornar ao saudoso momento lembrando-se que a noite escura de tal tristeza ou saudade que estamos passando logo findará com a chegada de mais uma manhã promissora, contendo mais sorrisos em novas e agradáveis situações.
“Quando temos medo, atiramos, quando ficamos nostálgicos, tiramos fotos.” (SONTAG, 2006, p.25) Vivemos numa época nostálgica, conforme nos constata Sontag (2006), logo as fotografias ativam ainda mais esta nostalgia. Para a autora,

A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maioria dos temas fotográficos tem, justamente, em virtude de serem fotografados, um toque de pathos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenção do fotógrafo. Um tema belo pode ser objeto de sentimentos pesarosos porque envelheceu, ou decaiu, ou não existe mais. Todas as fotos são “memento mori”. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia deste momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo. (SONTAG, 2006, p.26)

Para ilustrarmos a citação acima, basta apenas nos recordarmos de parentes e amigos mortos, ainda preservados em fotografias, em que sua presença exorciza parte de nossas angústias para Sontag (2006), elas suprem nossa relação portátil com o passado.

Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. Como o fogo da lareira num quarto, as fotos – sobretudo a de pessoas, de paisagens distantes e remotas, do passado desaparecido – são estímulos para o sonho (SONTAG, 2006, p.26)

Comparadas com a televisão, elas são mais memoráveis do que imagens em movimento, pois há uma nítida fatia do tempo, já nas imagens em movimento há um fluxo de imagens pouco selecionadas, onde a imagem anterior cancela a próxima. “Cada foto é um momento privilegiado, convertido em um objeto diminuto que as pessoas podem guardar e olhar outras vezes”. (SONTAG, 2006, p. 28)
“A fotografia é o inventário da mortalidade.” (SONTAG, 2006, p.85) Agora, com apenas o apertar do obturador, dotamos um momento de uma ironia póstuma, mostrando que aquelas pessoas incontestavelmente estavam presentes num determinado lugar e época. Através das fotos foram agrupadas e num instante depois, se dispersaram seguindo o curso de seus destinos independentes.

Assim como o fascínio exercido pelas fotos é um lembrete da morte, é também um convite ao sentimentalismo. As fotos transformam o passado no objeto de um olhar afetuoso, embaralham as distinções morais e desarmam os juízos históricos, por meio do pathos generalizado de contemplar o tempo passado. (SONTAG, 2006, p. 86)

Uma fotografia é apenas um fragmento e, através do avanço do tempo, conforme nos informa a autora, tudo o que a prende vai se afrouxando e então ela fica solta à deriva num passado flexível e abstrato, aberto a qualquer tipo de leitura e de associações com outras fotografias.

Após o evento, a foto ainda existirá, conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e de importância) que de outro modo ele jamais desfrutaria. Enquanto pessoas reais estão no mundo real matando a si mesmas ou matando pessoas reais, o fotógrafo se põe atrás de sua câmera, criando um pequeno elemento de outro mundo: o mundo imagem, que promete sobreviver a todos nós. (SONTAG, 2006, p.22)

As fotos são os objetos mais misteriosos de todos os que compõem o ambiente que identificamos como sendo moderno. Elas são realmente experiências capturadas. Fotografar, para Susan Sontag (2006, p.14) “é apropriar-se da coisa fotografada. Significa por a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento – e, portanto, ao poder.”.

Esse encantamento outorgado à fotografia justifica o horror que os primitivos tinham em deixar-se fotografar, o mesmo terror vindo dos espelhos que refletem a imagem, mas não a retém. A fotografia, no entanto, é espelho da memória: imobiliza nossa imagem para sempre. (ANDRADE, 2002, p.48)

É possível tornar visível o invisível nas fotografias “na própria evidência visual fotográfica contida nas coisas que restaram de quem lá esteve e já não está. De certo modo, nos resíduos da humanidade dos que partiram, as fotos nos dizem que sociedade é esta”. (MARTINS, 2008, p.27) Basta lembrarmos que através das imagens fotográficas podemos observar qual era a moda daquele tempo, a posição social dos fotografados ante algumas informações ali impressas, de até mesmo a linguagem corporal dos personagens da cena congelada pela fotografia.

O fragmento da realidade gravado na fotografia representa o congelamento do gesto da paisagem, e, portanto, a perpetuação de um momento, em outras palavras, da memória: memória do indivíduo, da comunidade, dos costumes, do fato social, da paisagem urbana, da natureza. A cena registrada na imagem não se repetirá jamais. O momento vivido, congelado pelo registro fotográfico, é irreversível. (KOSSOY, 2001, p. 155)

A vida, no entanto, prossegue, mas a fotografia segue preservando aquele cenário com seus personagens. Com o passar dos anos, os retratados envelhecem e morrem, o mesmo ocorre com o fotógrafo e todo o cenário ali registrado, mas de todo este processo apenas a fotografia sobrevive, ora na impressão original, ora reproduzida. (KOSSOY, 2001)
Estivemos naquele determinado momento e fomos felizes (ou não). A fotografia registrou-o. Sem a imagem, o cotidiano seria impossível. Mesmo quando não temos uma fotografia para cada situação, nosso imaginário cria a imagem em nós e para nós. De certo modo, hoje em dia, pensamos fotograficamente. (MARTINS, 2008) No que se concerne ao fato de observarmos cenas na tridimensionalidade de nossas vidas e imaginarmos a composição na bidimensionalidade. O eterno desejo de fotografar momentos bons, memoráveis pelo medo de que se não o registrarmos o perderemos para sempre.

Fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de informação e emoção. Memória visual do mundo físico e natural, da vida individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem – escolhida e refletida – de uma ínfima porção de espaço do mundo exterior. É também a paralisação súbita do incontestável avanço dos ponteiros do relógio: é, pois o documento que retém a imagem fugida de um instante da vida que flui ininterruptamente. (KOSSOY, 2001, p. 156)


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