sábado, 15 de março de 2014

Seu Sertório, o barqueiro

Oi o rio de Itanhaém...
Meu barco virou saudade
No rio de Itanhaém
Na hora de ir embora
O remo chora também

Adeus velho amigo rio
Adeus noroeste adeus
Vou ver se lá no sertão
os rios ainda são meus
adeus, adeus, adeus...
(Recolhido por Ernesto Zwarg. In: Itanhaém, um mar de Histórias. Expoente: Itanhaém, 2008)

 O “Tio Sertório”, como minha avó se referia a ele carinhosamente, foi, a meu ver, um homem de sorte, pois conhecia muito bem o Rio Itanhaém, esteve lá durante muitos anos de sua vida.
“Vamos à casa do Tio Sertório hoje à tarde?”
Esta frase permaneceu em minha memória por um longo tempo. Minha avó ficava radiante quando mencionava este nome. A figura deste senhor não se encontra em minhas memórias, já que o vi até meus quatro anos de idade, mas eu me lembrava do bom humor e euforia de minha avó quando caminhávamos até sua casa.
Sertório Domiciano Silva (1908 – 1988) era irmão de Anselmo Silva (1904 –1975), pai de minha avó. Minha mãe me conta que os dois eram muito semelhantes fisicamente, seu rosto, voz, apenas a estatura os diferenciava: meu bisavô era mais alto. Acredito que minha avó gostava de ir à casa de seu tio para vê-lo e por instantes, ter seu pai de volta. Mas certamente gostava de ir, pois Tio Sertório era amoroso, atencioso, sempre com um sorriso sincero em seu rosto.
Para saber mais sobre este notório caiçara, fui recebida em sua casa, onde Seu Sertório também morava, no dia 31 de janeiro de 2012 por uma de seus doze filhos, Esther Maria Silva Lima (1944-). Uma senhora simples, amigável, que com nostalgia e orgulho, contou-me sobre seu falecido pai. Através de suas palavras pude perceber o quanto ela ainda o admirava, o quão grande o afeto era, mesmo transcorridos vinte e quatro anos de seu falecimento por derrame cerebral. Dona Esther recebeu-me com seus netos e filhos, e no dia da visita quis retratá-la, ela foi ao quarto vestir sua melhor camisa e chamou esta parte da família para acompanharem-na, escolhendo também o local da captação, que em minha opinião desfavoreceu a imagem devido à alta luminosidade, mas ela quis ser registrada no sofá onde seu pai costumava descansar após o trabalho.
Itanhaém recebeu seus préstimos praticamente por toda sua vida. Nascido nesta cidade, desde os sete anos de idade ele trabalhou nestas terras. Seu trabalho mais notório certamente foi a travessia de barco sobre o Rio Itanhaém: dos que desejavam ir ou vir da “Vila Velha” (Centro da cidade) para a “Vila Nova” (Belas Artes) ou para a “Praia do Meio” (Praia do Sonho).
Sertório Domiciano da Silva nasceu em 28 de Setembro de 1898, descendente de índios Tupi Guarani, filho de José Domiciano da Silva e Laurinda Maria das Neves, casou-se em 05 de Julho de 1930 com Vitória Maria da Conceição, com quem teve 12 filhos.


Esther e Netos. Fotografia de Thais Oliveira Silva.  31. Jan. 2012.  

Seu Sertório foi uma figura muito respeitada por todos que o conheceram. Era um barqueiro da travessia do Rio Itanhaém antes da construção da ponte calçada. Este caiçara itanhaense é sempre lembrado com grande saudade e carinho por antigos moradores muitos dos quais ainda se recordam de terem feito travessia em sua canoa. Em entrevista, Esther (31. Jan. 2012) nos conta o quanto ele era amado por todos e como o povo antigo confiava nele, apesar de haver outros barqueiros, Seu Sertório era sempre procurado de um modo singular, os moradores antigos que desejavam atravessar cantavam da margem do Rio Itanhaém: “Seu Sertório... Traga a barca...” E o bom caiçara nunca lhes negava, não importa qual seja o horário. Esther lembra que até mesmo durante a noite ele era requisitado e mesmo se estivesse já deitado, levantava-se e ajudava a quem precisava. De acordo com Branco (2005), lembram os antigos que a ponte existente era apropriada unicamente para a passagem do trem, que corria por ela praticamente suspenso nos trilhos. Por volta de 1950 esta mesma ponte foi melhorada quando colocaram tábuas largas entre os trilhos para possibilitar a passagem de pedestres.
Num dia de trabalho mostrou-se altruísta ao saltar nas águas do Rio Itanhaém para salvar uma mulher com um bebê que havia caído acidentalmente no rio quando atravessava a ponte recém-inaugurada. Sertório era muito alegre, amava nadar e sempre fazia questão que ele mesmo ensinasse seus filhos a nadar antes mesmo de aprenderem a caminhar direito.
Gostava também de "prosear" com os amigos e de pescar. Homem de aspecto simples, com seus fortes traços indígenas, alegre e gentil, um típico caiçara itanhaense (tabacudo). Em noites de verão, contemplava as estrelas sobre a luz da lua e ao som de seu violão e a melodia de seus 12 filhos, o caiçara passava momentos descontraídos ao lado de sua grande família, em um verdadeiro “luau familiar”.
 As histórias que Itanhaém guarda sobre este caiçara caracterizam a coragem, honestidade e a simplicidade deste homem rude de grande sabedoria da vida.
Seu Sertório faleceu aos 90 anos de idade, em Itanhaém. Em sua homenagem a ponte sobre o Rio Itanhaém leva o seu nome. Um caiçara memorável. A ponte, portanto, hoje se chama “Sertório Domiciano da Silva”, uma homenagem ao saudoso barqueiro que sempre foi tão estimado por todos, sendo um típico filho da terra, homenagem realizada em 12 de Fevereiro de 1.990, através do Decreto Municipal nº 1.331/90.
Ferreira (2008, p. 106) descreve o Caiçara de um modo belo e poético, em que me identifiquei com minha poética visual: “Aquele que desliza manso pelo rio ao alvorecer, cortando as águas claras ou escuras com sua canoa que percorre a trajetória ribeirinha”. A Figura 6 retrata uma cena extremamente bela, porém cotidiana em Itanhaém, onde toda alvorada o Caiçara traça seu caminho silencioso pelo Rio rumo ao mar em movimentos suaves, porém precisos oriundos de uma rica experiência que lhe permite conhecer muito bem este seu velho amigo, o Rio.

: Aquele que desliza manso ao amanhecer. Foto de Thais Oliveira Silva 01. Abr. 2012

Quando eu atravesso a Ponte Sertório Domiciano sob o Rio Itanhaém, situada no final do Centro da cidade e início do bairro da Praia dos Sonhos, minha alma se transporta para o passado... Meu coração se enche de saudades de tudo aquilo que eu nem vi ou vivi, mas, que de tanto ouvir dos antigos, principalmente de minha avó é como se eu estivesse vivendo o momento deles... O momento em que o caiçara morava próximo ao mar, memoráveis anos antes da especulação imobiliária, em que o caiçara foi expulso de suas terras, de centenas de anos, para dar lugar a casas de veraneios e colônias de férias “regularizadas”, com escritura em seus nomes. (BRANCO, 2005)

Até 1940-50 viam-se, próximos à praia, alguns pequenos povoados formados por casas de bambu, taquara [...], telhados de sapé ou folhas de palmeira [...] Nos terrenos não havia cerca, o uso era comunitário. Por este litoral despovoado, cada família cultivava a terra que necessitava – a mandioca era cultivada perto das casas sobre a areia branca da restinga – e produzia o suficiente para o complemento da dieta familiar. [...] Somente após 1960 é que o caiçara, pressionado pelo avanço da expansão imobiliária, deslocou-se da linha da praia para o interior – o sertão. A partir desse momento o pescador praiano perdeu o acesso fácil ao mar. (BRANCO, 2005, p. 36)

De lá de cima da ponte, vê-se o encontro mágico das águas doces com as salgadas do Mar no local denominado Boca da Barra. É belo ver, durante o ano, o comportamento destes dois gigantes, ora homogêneos, quando é difícil notar o começo ou o fim de cada um, ora desiguais, tanto na coloração, quanto na movimentação de suas águas. É nostálgico observar lá de cima uma pequena canoa indo encontrar-se com o mar, o sol e o rio numa linda manhã de outono, a qual eu registrei uma série fotográfica em que denominei “Minha força está na Solidão do Amanhecer”, efetuada nos dias 01 e 20 de Abril de 2012.
 A vista aérea do Rio é belíssima, pois também a ponte construída no local auxilia nossa percepção de nuances da paisagem, pois ela não é reta, sempre no mesmo nível, a ponte descreve um caminho sinuoso, muito belo, em que a construção humana harmoniza-se à “construção” do Arquiteto Supremo: o maravilhoso encontro das águas ladeado pelo morro do Sapucaetava e a praia da Boca da Barra. Porém, sempre me persiste a ideia de observar o rio em seu nível, possuir uma canoa e deixar vagar lentamente sob a influência da relativa correnteza do rio ou então, com um remo, ao alvorecer encontrar-me com o Rei Sol, nascido com todo seu esplendor, em sua barca solar após sua vitoriosa jornada em terras sombrias.         
Minha poética visual baseou-se nestas travessias imaginárias sob o Rio Itanhaém, as quais durante toda minha infância eu as fazia, e agora, adulta, ainda ouso imaginar-me atravessando o rio Itanhaém com o uso de uma canoa, podendo visualizar o Rio em ângulos que nunca vi, sentindo a força de sua correnteza em certas épocas, a predominante calmaria em outras, deslizando solitariamente em direção ao alvorecer, contemplando os primeiros raios solares não mais de cima da ponte, mas no nível do rio, estando em harmonia com ele e também com o sol, sentindo suas cores em mim, suas incríveis e saturadas cores que me acompanham até os dias de hoje em todas minhas produções artísticas, influenciando-me a saturar as cores de minhas composições que opto não deixa-las em preto e branco quando se trata do nascimento do sol.
 O nascer do sol visto deste local foi o mais encantador que pude presenciar em meus trilhares sob minha cidade. Lá, o rio, o mar e o céu se fundem. Um imenso plano avermelhado, dourado, violeta que me seduziu definitivamente. O nascente se tinge do vermelho vivo - a cor da rebeldia – lado a lado com o ouro pálido da pacificação e da vida. E esse contraste profundo forma a paisagem ideal. Tudo lá é um sonho, suas cores, sua forma, seu aroma. O alvorecer neste lugar é único.


Cores e Formas de um sonho matutino. Foto de Thais Oliveira Silva 01. Abr. 2012

 A foto acima foi obtida poucos minutos após a anterior, onde ainda podemos ver um pequeno ponto escuro no rio, o qual é o Caiçara e sua canoa a poucos metros do mar. Este alvorecer possui um elemento chave, sob o qual pude compor esta cena. A nuvem que está encobrindo o Sol tem um formato sugestivo, gosto de ver desenhos em nuvens e em primeira vista, assim que abri o portão da casa de meu namorado e comecei a fotografar, na Praia dos Pescadores, logo visualizei um grande jacaré abocanhando o Sol, tentando ofuscar seu intenso brilho, porém, só quando cheguei ao alto da ponte Sertório foi que pude ver que seu formato belíssimo proporcionou reflexos únicos ao Rio e ao Céu neste dia, tal qual uma ampulheta etérea fosse colocada em nossos domínios neste momento, talvez para nos lembrar do quanto o tempo é efêmero. Ele não para.

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