domingo, 16 de março de 2014

Reisado


Partiram [os magos] de suas terras [no Oriente] e, guiados pela luz de uma estrela resplandecente, chegaram à gruta, em Belém, na Judéia, para adorar o filho de Deus que havia nascido, ofertando-lhe régios presentes: Ouro, Incenso e Mirra.
Síntese da Viagem dos Reis Magos baseada no Evangelho de Mateus (2, 1-12) (TORRES in Silva, 2008, P. 199)

Torres (2008) ao utilizar esta passagem bíblica nos mostra como Mateus apenas faz menção sobre os Magos, não dizendo os seus nomes, número de participantes, nem o local de procedência no Oriente. Este enigma, para Torres (2008), tem fomentado inúmeras reinterpretações ao longo dos tempos.
Mâle em 1904 reflete sobre o tema da seguinte maneira:

A imaginação popular cedo foi aos evangelhos, tentando complementá-los, no que faltava. As lendas originaram-se nos mais antigos séculos da cristandade. Elas nasceram do amor, de um tocante desejo de conhecer mais Jesus e aqueles próximos [...] O povo achava os evangelhos muito sucintos [...] Nenhuma das cenas da infância de Cristo forneceu mais rico material para o povo que a Adoração dos Magos. Suas misteriosas figuras, mostradas veladamente nos evangelhos, despertam ávida curiosidade nas pessoas. (MÂLE apud TORRES in SILVA, 2008, p. 200)

Torres (2008) afirma que o título de Reis atribuído aos Magos do Oriente, remete à Cesário, Bispo de Arles, da França, no Século VI. No século seguinte, o Papa Leão I assegurou, em seus Sermões que os Reis Magos eram em número de três. Já seus nomes somente mais tarde foram estabelecidos.
Durante a Idade Média, as tradições populares do ciclo natalino eram comuns em toda Europa Cristã.

Os dramas litúrgicos medievais eram utilizados como instrumento de ensino e divulgação da doutrina cristã. O episódio dos Magos do Oriente, desde cedo, tornou-se um dos temas prediletos para efeito de dramatização (Officium Stellae). Representações de rituais litúrgicos relativo aos Magos, que, a pouco, popularizando-se, transportados para espaços abertos – praças e ruas. Assim surgiram os cortejos, vinculados aos templos religiosos das cidades, que encenavam a temática dos Magos, bem como grupo peditórios, no âmbito dos povoados rurais que, de casa em casa, levavam a mensagem do nascimento de Jesus Cristo. (TORRES in SILVA, 2008, p. 200)

Em 1559, quando os colonizadores, em conjunto com os jesuítas e com o primeiro Governador Tomé de Souza, no período colonial e nos anos seguintes trouxeram essas tradições de Portugal para o Brasil. Aqui, a festividade dos Reis Magos, de acordo com Torres (2008), ocorria sob a forma de canto, danças e encenação, no processo de catequese e ensino, tanto para os nativos quanto para os próprios portugueses e, mais tarde, para os escravos africanos. Com o passar do tempo, ocorreram diferenças de uma região pra outra nas tradições dos Reis. Torres (2008) observa:

Na medida em que o povoamento expandiu-se, essas ramificações e se difundiram para todo o território colonizado. Naturalmente, essas tradições que chegaram ao Brasil sofreram, gradativamente, a influência local pela incorporação dos elementos da cultura negra e indígena, através de hibridismos religiosos e culturais, ou seja, como preconizam diversos folcloristas brasileiros, adquiriram a cor local. (TORRES in SILVA, 2008, p. 202)

O reisado é uma celebração que acontece anualmente entre 26 de Dezembro a 06 de janeiro, também conhecido como Dia de Reis, quando se revive a visita dos Reis Magos ao Jesus – Menino. Conta Branco (2005) que durante este período, todas as noites as comunidades caiçaras ficam animadas com as músicas dos grupos de cantores, que entoando serenadas tradicionais, vão de porta em porta despertando do sono a população que os acolhe alegremente:

Acordai se estais dormindo
Este sono tão profundo
Acordai e vindes ver,
As maravilhas do mundo

Lá no céu brilha uma estrela
Que os três magos conduziam
Pra adorar o Deus menino
Filho da virgem Maria.

Se tereis de dar o Reis
Dai-nos hoje que é o dia
Dai-nos ouro, dai-nos prata
Que vos damos alegria

Pela prenda que nos destes
Ganhastes um jubileu
Foi a escada que fizestes
Para subirdes ao céu

Agradecemos o Rei (gratos pela acolhita)
Que nos deu com alegria
A recompensa tereis
Aos pés da virgem Maria

Pela prenda que nos destes
Ganhastes um jubileu
Foi a escada que fizestes
Para subirdes aos céus

Vamos dar a despedida
Como deu o São Francisco
Senhores fiquem com Deus
Nós vamos com Jesus Cristo.

E vamos em côro
A sagrada Belém
Saudar o Menino
E a Virgem também
 (Autor desconhecido. Folia de Reis de Itanhaém In: Cultura Caiçara. Branco. Itanhaém, 2008)

            As letras sempre serão semelhantes pelo Brasil afora, já que se trata do mesmo tema: a anunciação do Nascimento de Jesus, o ritmo é único, é daqui mesmo. Nossa música é vigorosa, com o tempo forte bem marcado, com uma clara influência da música portuguesa, destacado em função dos instrumentos de metais utilizados anteriormente, mas até mesmo hoje em dia, na ausência destes, há ainda este ritmo vigoroso. Marca os aspectos da Vila Antiga, onde até mesmo nas missas da Igreja Matriz podiam-se ouvir os sons metálicos e poderosos do Trompete, trombone, pistão, entre outros. Músicos instruídos pelo memorável musicista Totó Mendes, Antônio Mendes da Silva Júnior (1890 – 1951), dotado de uma visão de futuro acima do normal, buscando proporcionar para a cidade a mais elevada cultura que se podia esperar.
             O grupo de Reisado de Itanhaém era constituído apenas por homens, em sua maioria instrumentistas de sopro, juntos com a banda, havia o Puxador e o Coro, que acordavam os moradores nas madrugadas do período comemorado. Mais tarde, os instrumentos de sopro foram substituídos paulatinamente pelos os instrumentos de cordas. Hoje, o grupo conta com a participação de mulheres e crianças. No período, por volta das onze horas, o grupo se reúne e sai em caminhada para visitar as casas. O roteiro não é divulgado para haver o elemento surpresa da visita, para cultivar o sentido de “acordar” os moradores, dando-lhes “boas-vindas”.
Estes versos são cantados por todos os presentes seguindo a voz do puxador. De casa em casa vão repetindo, saudando os moradores e recebendo suas prendas. Em casas mais tradicionais é feita uma homenagem à bandeira do Reisado, algumas oração e bênçãos e cantam todos juntos agradecendo. Segue-se a oração final:

Senhor, Rei dos Reis
Abençoe esta família
Que com carinho acolheu
O reviver dos Reis Magos
Em direção à Estrela de Belém,
Anunciando a chegada do Menino-Deus
Aos lares da nossa querida
“Conceição de Itanhaém”.
Sobre todos derrame muita paz, muita luz
E muita vontade de seguir sempre
Os caminhos do Menino-Jesus.
Amém

E assim continua pela noite afora. Em Itanhaém ocorreu adaptações nos presentes dos Reis Magos ao Menino-Deus. No lugar do ouro, incenso e mirra, aqui se utiliza pedras douradas, conchinhas do mar e folhas do Ipeguaçu (árvore nativa local).
O grupo de seresteiros após cantarem em frente a casa, ao término da canção param e neste ponto, o dono da casa acende as luzes, abre as portas e convida os festeiros a compartilharem uma simbólica oferenda de bolos e bebidas. Em Itanhaém, quando os moradores oferecem também prendas, elas são recolhidas para a realização da festa final de Reis, na Eucaristia. Na Figura 11 temos a imagem de um dos participantes, o prendeiro, o qual era responsável pela coleta dos donativos obtidos pela madrugada afora.
Nesta cidade, como pontuou Branco (2005) e como pude observar neste ano em que acompanhei para fotografar, o Reisado é acompanhado com crianças e jovens da cidade, onde suas vozes se misturam ao grande coro com seus violões e vozes afinadas.


A participação de pessoas da mesma família e de amigos nos Grupos de Reis é um fato de extrema importância para entendermos a resistência das tradições, na medida em que fica mais fácil se organizar e preservar suas raízes culturais, transmitidas de geração em geração, de pai para filho. [...] Essa experiência e a aproximação dos mais jovens são fundamentais para a perpetuação dessas tradições, uma vez que os detonadores do “conhecimento dos antigos” encontram-se, em sua maioria, em idade avançada e, em alguns casos, infelizmente não podem mais difundir seu rico legado. Vivenciando o fato folclórico, as crianças conhecem/absorvem melhor esse conhecimento transmitido pelos Mestres, reforçando seus laços culturais e conscientizando-se de sua identidade. (TORRES in SILVA, 2008, p. 204-205)




Arrecadação de prendas. Foto de Thais Oliveira Silva. 03. Jan. 2012



O grupo, na tradição itanhaense é composto por:
·         Alferes da Noite, que é responsável pelo roteiro, início do canto, a retirada e pela organização, inclusive a guarda das prendas recebidas.
·         Segundo Alferes, ajudante de campo do Alferes da Noite que o secunda em suas funções.
·         Bandeireiros, aqueles que carregam as bandeiras do Reisado.
·         Prendeiros, os que pegam as prendas e carregam o carrinho.
·         Puxadores são aqueles cantores que “puxam o canto” (diz-se daqueles que iniciam os versos seguidos pelo coro)
·         Tocadores, os músicos com seus instrumentos.
·         Reis, os que se fantasiam de Reis Magos e dão as mensagens de casa em casa.
·         Coro de vozes, todos aqueles que acompanham a comitiva e o canto.


Ganhastes um Jubileu. Foto de Thais Oliveira Silva. 02. Jan. 2012

Percorri com o grupo de seresteiros por diversos bairros da cidade nas noites de 02 e 03 de janeiro de 2012, registrando inúmeras cenas desta celebração. Por onde passaram o grupo despertava curiosidade e admiração. A madrugada transcorreu sem que eu sentisse-me exausta, tal era a energia ali encontrada. Foi admirável ao ver a disposição de muitas senhoras de idade integradas ao grupo, em plena madrugada mostrarem-se ainda tão animadas.
 A imagem que mais me emocionou foi a deste senhor que recebe o grupo com imensa alegria. Seu belo sorriso eu tive muita sorte de captá-lo, pois minha câmera compacta não tem potência para administrar imagens com baixa luminosidade. Este é o momento em que o morador recebe do Alferes Bechelli e dos outros participantes as canções que proclamam o Nascimento do Menino Deus e tantas outras pertencentes ao repertório do grupo, onde exaltam as belezas e memórias de nossa cidade.
São pertinentes as questões de Andrade (2002, p. 19) para analisarmos esta imagem  “Será que a linguagem visual tem a autonomia de registrar, e ainda transmitir as emoções de um povo, uma tribo, uma pessoa? Como captar essas imagens, as imagens sagradas no tempo e no espaço do outro?”.

Aqui estão os Reis cantando
Numa alegria caiçara,
Sob o luar, que na praia
Rebrilha n`água o prateado do sonho
Anunciando que o Menino-Deus
Já é conosco:

...No peixe enrolado na rede
Para saciar a fome
De nossa gente.
...Na mandioca transformada
Em manema do café da manhã
E do peixe do ensopado
...No arroz socado
Dá-nos cuscuz de tão fortes
Encontros em festivas alvoradas
...Nesta nossa paisagem
A marcar em cada coração sensível
O seu belo, num memorial fascínio
...Na tradição a se enraizar
Mais e mais, no seio dos que amam
Este chão de pedra e areia...

Aqui estão os Reis acordando,
A todos do sono insistente
Em acabar com as lembranças
De que quando crianças
Não queríamos que tivessem fim.

Aqui os Reis entrando
E celebrando a saudade
Das Boas-Vindas que nos fazem perguntar:
- Onde estão os jundus, cambucás e araçás?
Que na memória despertam
O novo tempo que virá.

Aqui estão os Reis...
Já vão partindo...
Aguardando o ano bem-vindo
Para cantar a eterna esperança
Do sonhos de serem sempre os Reis,
Resgatando pela nova prenda
A certeza de continuar a História
Desta nossa amada Itanhaém,
Com seu povo, sua terra e sua glória...

 (Ernesto Bechelli. Reis aqui estão. In: Flores da Pedra. Itanhaém, 1997).
            Em Itanhaém, há alguns Reisados transcoridos, as figuras dos três Reis Magos são representada por mulheres, as quais são portadoras do nosso “ouro, insenso e mirra”. Na fotografia abaixo, vemos as três postadas em frente ao portão de um dos moradores visitados naquela madrugada. Nesta encenação elas estão sempre à frente, juntamente com a bandeira do Reisado e á sua retaguarda os demais seresteiros entoando alegremente cada verso tanto das canções quanto das preces pertinentes à temática do nascimento de Jesus.  Os versos “Acordai se estais dormindo...” cantados num alegre ritmo lusitano, vigoroso, numa profusão de vozes carismáticas ainda ecoa em minha mente. Tal experiência jamais me esquecerei.




Os Reis aqui estão. Foto de Thais Oliveira Silva. 03. Jan. 2012




Outras imagens destes dois dias observados:













Nenhum comentário:

Postar um comentário