Partiram [os magos] de suas terras [no
Oriente] e, guiados pela luz de uma estrela resplandecente, chegaram à gruta,
em Belém, na Judéia, para adorar o filho de Deus que havia nascido,
ofertando-lhe régios presentes: Ouro, Incenso e Mirra.
Síntese da Viagem dos Reis Magos baseada
no Evangelho de Mateus (2, 1-12) (TORRES in Silva, 2008, P. 199)
Torres
(2008) ao utilizar esta passagem bíblica nos mostra como Mateus apenas faz
menção sobre os Magos, não dizendo os seus nomes, número de participantes, nem
o local de procedência no Oriente. Este enigma, para Torres (2008), tem
fomentado inúmeras reinterpretações ao longo dos tempos.
Mâle
em 1904 reflete sobre o tema da seguinte maneira:
A
imaginação popular cedo foi aos evangelhos, tentando
complementá-los, no que faltava. As lendas originaram-se nos mais antigos
séculos da cristandade. Elas nasceram do amor, de um tocante desejo de conhecer
mais Jesus e aqueles próximos [...] O povo achava os evangelhos muito sucintos
[...] Nenhuma das cenas da infância de Cristo forneceu mais rico material para
o povo que a Adoração dos Magos. Suas misteriosas figuras, mostradas
veladamente nos evangelhos, despertam ávida curiosidade nas pessoas. (MÂLE apud TORRES in SILVA, 2008, p. 200)
Torres
(2008) afirma que o título de Reis atribuído aos Magos do Oriente, remete à
Cesário, Bispo de Arles, da França, no Século VI. No século seguinte, o Papa
Leão I assegurou, em seus Sermões que os Reis Magos eram em número de três. Já
seus nomes somente mais tarde foram estabelecidos.
Durante
a Idade Média, as tradições populares do ciclo natalino eram comuns em toda
Europa Cristã.
Os
dramas litúrgicos medievais eram utilizados como instrumento de ensino e
divulgação da doutrina cristã. O episódio dos Magos do Oriente, desde cedo,
tornou-se um dos temas prediletos para efeito de dramatização (Officium
Stellae). Representações de rituais litúrgicos relativo aos Magos, que, a
pouco, popularizando-se, transportados para espaços abertos – praças e ruas.
Assim surgiram os cortejos, vinculados aos templos religiosos das cidades, que
encenavam a temática dos Magos, bem como grupo peditórios, no âmbito dos
povoados rurais que, de casa em casa, levavam a mensagem do nascimento de Jesus
Cristo. (TORRES in SILVA, 2008, p. 200)
Em
1559, quando os colonizadores, em conjunto com os jesuítas e com o primeiro
Governador Tomé de Souza, no período colonial e nos anos seguintes trouxeram
essas tradições de Portugal para o Brasil. Aqui, a festividade dos Reis Magos,
de acordo com Torres (2008), ocorria sob a forma de canto, danças e encenação,
no processo de catequese e ensino, tanto para os nativos quanto para os
próprios portugueses e, mais tarde, para os escravos africanos. Com o passar do
tempo, ocorreram diferenças de uma região pra outra nas tradições dos Reis.
Torres (2008) observa:
Na
medida em que o povoamento expandiu-se, essas ramificações e se difundiram para
todo o território colonizado. Naturalmente, essas tradições que chegaram ao Brasil
sofreram, gradativamente, a influência local pela incorporação dos elementos da
cultura negra e indígena, através de hibridismos religiosos e culturais, ou
seja, como preconizam diversos folcloristas brasileiros, adquiriram a cor
local. (TORRES in SILVA, 2008, p. 202)
O
reisado é uma celebração que acontece anualmente entre 26 de Dezembro a 06 de
janeiro, também conhecido como Dia de Reis, quando se revive a visita dos Reis
Magos ao Jesus – Menino. Conta Branco (2005) que durante este período, todas as
noites as comunidades caiçaras ficam animadas com as músicas dos grupos de
cantores, que entoando serenadas tradicionais, vão de porta em porta
despertando do sono a população que os acolhe alegremente:
Acordai
se estais dormindo
Este
sono tão profundo
Acordai
e vindes ver,
As
maravilhas do mundo
Lá
no céu brilha uma estrela
Que
os três magos conduziam
Pra
adorar o Deus menino
Filho
da virgem Maria.
Se
tereis de dar o Reis
Dai-nos
hoje que é o dia
Dai-nos
ouro, dai-nos prata
Que
vos damos alegria
Pela
prenda que nos destes
Ganhastes
um jubileu
Foi
a escada que fizestes
Para
subirdes ao céu
Agradecemos
o Rei (gratos pela acolhita)
Que
nos deu com alegria
A
recompensa tereis
Aos
pés da virgem Maria
Pela
prenda que nos destes
Ganhastes
um jubileu
Foi
a escada que fizestes
Para
subirdes aos céus
Vamos
dar a despedida
Como
deu o São Francisco
Senhores
fiquem com Deus
Nós
vamos com Jesus Cristo.
E
vamos em côro
A
sagrada Belém
Saudar
o Menino
E
a Virgem também
(Autor desconhecido. Folia de Reis de Itanhaém
In: Cultura Caiçara. Branco.
Itanhaém, 2008)
As letras sempre serão semelhantes
pelo Brasil afora, já que se trata do mesmo tema: a anunciação do Nascimento de
Jesus, o ritmo é único, é daqui mesmo. Nossa música é vigorosa, com o tempo
forte bem marcado, com uma clara influência da música portuguesa, destacado em
função dos instrumentos de metais utilizados anteriormente, mas até mesmo hoje
em dia, na ausência destes, há ainda este ritmo vigoroso. Marca os aspectos da
Vila Antiga, onde até mesmo nas missas da Igreja Matriz podiam-se ouvir os sons
metálicos e poderosos do Trompete, trombone, pistão, entre outros. Músicos
instruídos pelo memorável musicista Totó Mendes, Antônio Mendes da Silva Júnior
(1890 – 1951), dotado de uma visão de futuro acima do normal, buscando
proporcionar para a cidade a mais elevada cultura que se podia esperar.
O grupo de Reisado de Itanhaém era constituído
apenas por homens, em sua maioria instrumentistas de sopro, juntos com a banda,
havia o Puxador e o Coro, que acordavam os moradores nas madrugadas do período
comemorado. Mais tarde, os instrumentos de sopro foram substituídos
paulatinamente pelos os instrumentos de cordas. Hoje, o grupo conta com a
participação de mulheres e crianças. No período, por volta das onze horas, o
grupo se reúne e sai em caminhada para visitar as casas. O roteiro não é
divulgado para haver o elemento surpresa da visita, para cultivar o sentido de
“acordar” os moradores, dando-lhes “boas-vindas”.
Estes
versos são cantados por todos os presentes seguindo a voz do puxador. De casa
em casa vão repetindo, saudando os moradores e recebendo suas prendas. Em casas
mais tradicionais é feita uma homenagem à bandeira do Reisado, algumas oração e
bênçãos e cantam todos juntos agradecendo. Segue-se a oração final:
Senhor,
Rei dos Reis
Abençoe
esta família
Que
com carinho acolheu
O
reviver dos Reis Magos
Em
direção à Estrela de Belém,
Anunciando
a chegada do Menino-Deus
Aos
lares da nossa querida
“Conceição
de Itanhaém”.
Sobre
todos derrame muita paz, muita luz
E
muita vontade de seguir sempre
Os
caminhos do Menino-Jesus.
Amém
E
assim continua pela noite afora. Em Itanhaém ocorreu adaptações nos presentes
dos Reis Magos ao Menino-Deus. No lugar do ouro, incenso e mirra, aqui se
utiliza pedras douradas, conchinhas do mar e folhas do Ipeguaçu (árvore nativa
local).
O
grupo de seresteiros após cantarem em frente a casa, ao término da canção param
e neste ponto, o dono da casa acende as luzes, abre as portas e convida os
festeiros a compartilharem uma simbólica oferenda de bolos e bebidas. Em
Itanhaém, quando os moradores oferecem também prendas, elas são recolhidas para
a realização da festa final de Reis, na Eucaristia. Na Figura 11 temos a imagem
de um dos participantes, o prendeiro, o qual era responsável pela coleta dos
donativos obtidos pela madrugada afora.
Nesta
cidade, como pontuou Branco (2005) e como pude observar neste ano em que
acompanhei para fotografar, o Reisado é acompanhado com crianças e jovens da
cidade, onde suas vozes se misturam ao grande coro com seus violões e vozes
afinadas.
A
participação de pessoas da mesma família e de amigos nos Grupos de Reis é um
fato de extrema importância para entendermos a resistência das tradições, na
medida em que fica mais fácil se organizar e preservar suas raízes culturais,
transmitidas de geração em geração, de pai para filho. [...] Essa experiência e
a aproximação dos mais jovens são fundamentais para a perpetuação dessas
tradições, uma vez que os detonadores do “conhecimento dos antigos”
encontram-se, em sua maioria, em idade avançada e, em alguns casos,
infelizmente não podem mais difundir seu rico legado. Vivenciando o fato
folclórico, as crianças conhecem/absorvem melhor esse conhecimento transmitido
pelos Mestres, reforçando seus laços culturais e conscientizando-se de sua
identidade. (TORRES in SILVA, 2008, p. 204-205)
Arrecadação de prendas. Foto de Thais
Oliveira Silva. 03. Jan. 2012
O
grupo, na tradição itanhaense é composto por:
·
Alferes da Noite, que é responsável pelo
roteiro, início do canto, a retirada e pela organização, inclusive a guarda das
prendas recebidas.
·
Segundo Alferes, ajudante de campo do Alferes
da Noite que o secunda em suas funções.
·
Bandeireiros, aqueles que carregam as
bandeiras do Reisado.
·
Prendeiros, os que pegam as prendas e
carregam o carrinho.
·
Puxadores são aqueles cantores que “puxam o
canto” (diz-se daqueles que iniciam os versos seguidos pelo coro)
·
Tocadores, os músicos com seus instrumentos.
·
Reis, os que se fantasiam de Reis Magos e dão
as mensagens de casa em casa.
·
Coro de vozes, todos aqueles que acompanham a
comitiva e o canto.
Ganhastes um Jubileu. Foto de Thais Oliveira Silva. 02.
Jan. 2012
Percorri
com o grupo de seresteiros por diversos bairros da cidade nas noites de 02 e 03
de janeiro de 2012, registrando inúmeras cenas desta celebração. Por onde
passaram o grupo despertava curiosidade e admiração. A madrugada transcorreu
sem que eu sentisse-me exausta, tal era a energia ali encontrada. Foi admirável
ao ver a disposição de muitas senhoras de idade integradas ao grupo, em plena
madrugada mostrarem-se ainda tão animadas.
A imagem que mais me emocionou foi a deste
senhor que recebe o grupo com imensa alegria. Seu belo sorriso eu
tive muita sorte de captá-lo, pois minha câmera compacta não tem potência para
administrar imagens com baixa luminosidade. Este é o momento em que o morador
recebe do Alferes Bechelli e dos outros participantes as canções que proclamam
o Nascimento do Menino Deus e tantas outras pertencentes ao repertório do
grupo, onde exaltam as belezas e memórias de nossa cidade.
São
pertinentes as questões de Andrade (2002, p. 19) para analisarmos esta imagem “Será que a linguagem visual tem a autonomia de registrar, e ainda
transmitir as emoções de um povo, uma tribo, uma pessoa? Como captar essas
imagens, as imagens sagradas no tempo e no espaço do outro?”.
Aqui estão os Reis
cantando
Numa alegria caiçara,
Sob o luar, que na
praia
Rebrilha n`água o
prateado do sonho
Anunciando que o
Menino-Deus
Já é conosco:
...No peixe enrolado
na rede
Para saciar a fome
De nossa gente.
...Na mandioca
transformada
Em manema do café da
manhã
E do peixe do
ensopado
...No arroz socado
Dá-nos cuscuz de tão
fortes
Encontros em festivas
alvoradas
...Nesta nossa
paisagem
A marcar em cada
coração sensível
O seu belo, num
memorial fascínio
...Na tradição a se
enraizar
Mais e mais, no seio
dos que amam
Este chão de pedra e
areia...
Aqui estão os Reis
acordando,
A todos do sono
insistente
Em acabar com as
lembranças
De que quando
crianças
Não queríamos que
tivessem fim.
Aqui os Reis entrando
E celebrando a
saudade
Das Boas-Vindas que
nos fazem perguntar:
- Onde estão os
jundus, cambucás e araçás?
Que na memória
despertam
O novo tempo que
virá.
Aqui estão os Reis...
Já vão partindo...
Aguardando o ano
bem-vindo
Para cantar a eterna
esperança
Do sonhos de serem
sempre os Reis,
Resgatando pela nova
prenda
A certeza de
continuar a História
Desta nossa amada
Itanhaém,
Com seu povo, sua
terra e sua glória...
(Ernesto Bechelli. Reis aqui estão. In: Flores da Pedra. Itanhaém, 1997).
Em
Itanhaém, há alguns Reisados transcoridos, as figuras dos três Reis Magos são
representada por mulheres, as quais são portadoras do nosso “ouro, insenso e
mirra”. Na fotografia abaixo, vemos as três postadas em frente ao portão de um dos
moradores visitados naquela madrugada. Nesta encenação elas estão sempre à
frente, juntamente com a bandeira do Reisado e á sua retaguarda os demais
seresteiros entoando alegremente cada verso tanto das canções quanto das preces
pertinentes à temática do nascimento de Jesus.
Os versos “Acordai se estais dormindo...” cantados num alegre ritmo
lusitano, vigoroso, numa profusão de vozes carismáticas ainda ecoa em minha
mente. Tal experiência jamais me esquecerei.
Os Reis aqui estão. Foto de Thais Oliveira Silva. 03. Jan.
2012
Outras imagens destes dois dias observados:
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