FOTOGRAFIA:
ARTE MECÂNICA OU CIÊNCIA ARTÍSTICA?
Em l839, a Academia de Ciências da França, em Paris,
anuncia para o mundo a invenção de um revolucionário processo de fixação da imagem
através da luz em placa metálica, o daguerreótipo, nome que homenageia Louis
Jacques Mandé Daguerre, o seu inventor oficial e que teria chegado a essa
descoberta a partir do aperfeiçoamento das pesquisas de Joseph Nicéphore
Niépce.
Nesse mesmo ano, em Londres,
a denominação fotografia é comunicada oficialmente à Royal Society
pelo químico e astrônomo inglês John Herschel, provavelmente com base nas
experiências de Willian Henri Fox Talbot, inventor do processo negativo e
positivo, conhecido como calótipo. Assim, pode-se constatar que a fotografia é
um exemplo de descoberta múltipla, ou seja, num dado momento a solução de
determinados problemas passa a preocupar mais de uma pessoa, em diferentes
lugares, de forma independente e simultânea. (FONSECA, 2008, p. 1)
A câmera fotográfica não é invenção de apenas
um homem, mas a soma de várias descobertas, até mesmo o invento renascentista
denominado câmara escura, que é um dos mais importantes no campo da óptica, foi
crucial para o aparecimento da máquina fotográfica e consequentemente da
fotografia, é já descrito por autores do século XVI. Leonardo da Vinci (1452-
1519) já a conhecia e usava, a par de outros artistas, para esboços de
pinturas. De acordo com Kossoy (2001), desde o renascimento, o homem serviu-se
da câmera escura, instrumento que facilitava o desenho preciso de uma paisagem
que por alguma razão lhe interessou conservar a imagem. O desenho formava-se no
interior da câmera e através dele delineavam suas formas.
Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) morreu sem
poder ter acompanhado o reconhecimento de seu invento. Seu continuador e
colaborador Louis-Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) espera até 1839 para ter
sua criação reconhecida na Academia de Ciências e Artes, no Instituto Francês,
conforme nos aponta Andrade (2002) e isso ocorre graças ao discurso do físico
Arago (1786 – 1853), que
defende brilhantemente a tese na câmara dos deputados afirmando:
Quando
os inventores de um novo instrumento o aplicam à observação da natureza, o que
eles esperavam da descoberta é sempre uma pequena fração das descobertas
sucessivas, em cuja origem está o instrumento. (BENJAMIM apud
ANDRADE, 2002, p.34)
A
fotografia nasce em pleno Romantismo e em meio às grandes transformações
sociais e econômicas e desde o início mostra-se instigante, provocando reações
contrárias de artistas e intelectuais. Logo no início há uma compulsão na busca
de retratos de estúdio e poder admirar a sua própria imagem, tudo isto bem mais
barato que as pinturas a óleo, até então um privilégio da burguesia. Andrade
nos aponta que: “Essa é uma das principais razões da fotografia sofrer
discriminação: o fato de industrializar e comercializar a arte.” (ANDRADE,
2002, p.34)
A
população divide-se em opiniões a respeito da fotografia. Não se consegue
chegar a um consenso. Até mesmo no meio artístico há múltiplas opiniões, já que
o medo da industrialização da arte destinada ao retrato era algo real. Porém, a
captação da câmera fotográfica vai além de registrar pessoas. Fotógrafos passam
a catalogar imagens da natureza, onde obtemos um registro muito mais fidedigno e
preciso do que um desenho a mão, os quais passam a chamar atenção da ciência.
O
responsável pelo valor científico atribuído às capturas fotográficas foi Fox
Talbot (1800-1877) quando utiliza a câmera para capturar fragmentos da
realidade. Fotografava insetos, conchas, plantas e flores para botânicos. Estas
imagens são registradas na publicação do livro de Talbot, conforme Andrade
(2002) expõe, no livro intitulado “The Pencil of Nature”, de 1842.
Vemos
que com o avanço tecnológico, a sociedade deseja libertar-se de fantasias e
imprecisões que poderiam ser encontrados em antigos registros e desejam que a
câmera fotográfica os auxiliem a ver o mundo com clareza, precisão científica.
O
desenvolvimento industrial, juntamente com o aprimoramento da técnica
fotográfica, transformou conceitos e valores, sobretudo da burguesia. A partir
daí surge uma nova consciência da realidade e uma apreciação, da então desconhecida,
Natureza. Andrade (2002, p.35) afirma: “Exige-se exatidão científica e uma
reprodução fiel da realidade em obras de arte, o que desperta olhares para a
fotografia.”.
Deste
modo, a fotografia paulatinamente vai ganhando terreno em nossas vidas, devido
à sua prestigiada forma de reprodução que até hoje muitos acreditam ser o
espelho da realidade, portanto, tendo este poder de capturar instantes de
nossas vidas com maestria, passamos a utilizá-la compulsivamente, conforme nos
mostra Martins (2008):
A
vida complexa, cheia demais, cheia de gente, de edifícios, de coisas sem vida,
congestionada de solicitações visuais, encontrou na fotografia um meio de
guardar o que “vale a pena”, o que queremos que fique. Diferentemente da
pintura, em que o detalhe é o elemento significativo da composição, não raro o
decodificador simbólico do que o artista está querendo dizer com o que parece
ser o principal. Na fotografia, que nasce em preto-e-branco, sem a carga
simbólica das cores, que nasce binária e simplificadora, não é estranha essa
ausência de recursos interpretativos. Ela atende, justamente, à necessidade
social e também subjetiva de ordenar imaginariamente o irrelevante da vida
cotidiana e cinzenta que nasce com a modernidade, da qual a câmera fotográfica
é um dos instrumentos mais espetaculares. (MARTINS, 2008, p.40)
Como percebemos nesta
declaração do autor, assim que a fotografia entra na vida cotidiana da
sociedade há a abertura para uma nova visão do que nos cerca. A partir disto,
passamos compulsivamente a colecionar imagens para então compreender nossa
vida, observando seus fragmentos registrados nas fotografias.
Conforme exposto por Fonseca (2008), a fotografia mostra o quanto uma forma de
representação técnica e simples era esperada ansiosamente pela sociedade industrializada
do século XIX, a qual já pressentia que possuía a tecnologia necessária para
colocar em prática um sonho antigo da humanidade: o de fixar momentos da
existência.
O fascínio diante de uma
fotografia surge principalmente dessa sua capacidade de reproduzir, de forma
bem convincente, o instante. A ilusão de sua captura é algo que a aproxima da
magia, mesmo sabendo que, para a sua realização, há uma explicação científica que
aponta para o uso de recursos ópticos, químicos e técnicos necessários à
revelação de cada imagem. (FONSECA, 2008, p.7)
Tal
magia ultrapassou décadas, as quais formaram mais de uma centena de anos. O
instante em que capturamos algo nas imagens fotográficas sempre nos causará
fascínio: estamos eternizando um momento de nossas vidas. Ele está aqui, em
nossas mãos, palpável a qualquer momento e em qualquer lugar.
Benjamim
apud Andrade (2002) esclarece que o
processo de reprodução das imagens passou por uma grande aceleração, pois o
olho apreende mais depressa que a mão que desenha. A partir daí, a imagem
situa-se no mesmo nível que a palavra oral. Com o decorrer dos anos e a
melhoria da tecnologia, a fotografia testemunhava infinitamente mais que uma
criação artística, já que sua velocidade é insuperável à técnica humana de
também registrar a realidade.
A
partir de 1888, a fotografia estava nas mãos do homem comum, conforme nos
informa Martins (2008), devido à invenção de George Eastman (1854- 1932), a
câmera com rolo de filme. Desde então já não havia as limitações físicas do
equipamento profissional. A máquina era portátil e poderia ser levada para
qualquer lugar. O lema publicitário veio bem a calhar: “Você clica e nós
fazemos o resto”. Aparece então a “fotografia vernacular”, a foto reduzida a
apenas clicar, ou seja, a fotografia ingênua, onde as pessoas costumam
registrar diversos fatos de sua vida pouco se importando com a composição da
imagem, concebida apenas para retratar os personagens e descontextualizá-los do
cenário, onde a ênfase cai sobre o registro da pessoa.
Sobre
o uso indiscriminado da fotografia vernacular pela sociedade, Sontag (2006)
observa:
Desde
seu início, a fotografia implicava a captura do maior número possível de temas.
A pintura jamais teve um objetivo tão imperioso. A subsequente industrialização
da tecnologia da câmera apenas cumpriu uma promessa inerente à fotografia,
desde seu início: democratizar todas as experiências ao traduzi-las em imagens.
(SONTAG, 2006, p.18)
Hoje
em dia temos ainda mais efervescente está prática graças à imagem digital, a
qual possibilita a visualização da figura mesmo se não a imprimir sob o papel.
Sempre teremos conhecidos que durante os primeiros anos de vida de seus filhos,
por exemplo, fizeram mais de dez mil registros fotográficos da criança em
diversas cenas e situações.
E
Tavares (2009), também a respeito da “fotografia vernacular”, chama nossa
atenção para este assunto, fazendo-nos refletir sobre a fotografia e o seu
lugar na arte:
Pensemos
um pouco como os mais puristas amantes da pintura, mesmo da contemporânea: a
fotografia mata por completo o conceito canônico de artista. A fotografia
permite, grosso modo, que qualquer pessoa possa ser artista. Um bom
enquadramento do tema, uma obturação perfeita, o efeito da lente especial ou o
tratamento digital fazem com que o comum cidadão possa ser num ápice, um
artista. (TAVARES, 2009, p.7)
Como
percebemos com esta informação, há muito mais chances de um leigo sair-se bem
com uma produção fotográfica do que em outras áreas artísticas, tais como
pintura e escultura. Uma luz favorável, uma boa percepção do local já seria
suficiente.
Seria
então a fotografia uma arte mecânica, a qual qualquer um poderia realizá-la? Não
há a construção subjetiva como também a objetiva, que qualquer obra de arte
deve ter? Na época em que a fotografia surgiu, a ciência e a arte traçavam percursos
distintos. Muzardo (2010) declara:
Enquanto aquela enaltecia o
rigor metodológico e técnico, esta se abria para a subjetividade e livre
criação, uma vez que havia sido liberada do trabalho de imitar a natureza e as
demais coisas existentes. Nesse meio, surgia a fotografia, que ora se
assemelhava com a ciência, ora com a arte. (MUZARDO, 2010, p.2)
Deste modo, a
fotografia representava, paralelamente, uma cópia da realidade, fato que é
posto em dúvida atualmente; e uma criação artística: a razão e a emoção. Seria,
portanto, “a forma híbrida de uma ‘arte exata’ e, ao mesmo tempo, de uma
‘ciência artística. ’” (FABRIS apud
MUZARDO, 2010, p.2) Atualmente ainda não está descartado estas duas facetas da
linguagem fotográfica. Ela está tanto no campo científico quanto no artístico
em iguais medidas.
Como nos orienta a
autora, anteriormente a esta constatação, quando apenas criam que a fotografia
era capaz de unicamente copiar a realidade, havia um argumento apresentado onde
dizia que uma máquina não possibilitava interferência intelectual sobre sua
representação, não devido, necessariamente, ao fato de não haver interferência
manual do operador, do fotógrafo, mas por estar muito mais voltada para o
mecânico do que para o intelecto.
Porém, eles não
perceberam que não se pode abolir o caráter artístico da fotografia, visto que
ela envolve construção, fantasia, desejos, maneiras de manipular e registrar a
realidade, elementos como cores, luz, sombra, planos e calor. Entretanto, seu
caráter científico, contudo, também não pode ser descartado, pois a evolução tecnológica
influencia a maneira de se realizarem as fotografias, sua construção e
disseminação.
A difusão da fotografia provocou um forte abalo no meio
artístico. Primeiramente achava-se que a fotografia e sua capacidade de
reproduzir o real tinham relegado a um segundo plano qualquer tipo de pintura:
Mais tarde, acreditava-se
que o mesmo fato tinha liberado a “verdadeira arte” da necessidade de ser uma
cópia do real, dando-lhe espaço para a criatividade, ideia que foi defendida
por artistas e intelectuais da época, como o poeta Baudelaire, o qual [...]
“enfatiza a separação arte/fotografia, concedendo a primeira um lugar na
imaginação criativa e na sensibilidade humana, própria à essência da alma,
enquanto à segunda é reservado o papel de instrumento de uma memória documental
da realidade, concebida em toda a sua amplitude”. (MAUAD apud MUZARDO, 2010,
p.3)
Nesse momento, notamos a crença na correspondência entre
fotografia e realidade, a imagem produzida pela câmera como sendo um espelho do
que de fato aconteceu, tal crença que influenciou até mesmo em como se dá o
desenrolar dos fatos relacionados à história da fotografia:
Pode-se dizer que a própria
história da fotografia confunde-se com as diferentes abordagens aplicadas em
sua análise, ora encarando-a como uma transformação do real – o discurso do
código e da desconstrução –, ora como um vestígio do real, uma referência, ou
seja, algo que não é uma cópia perfeita do concreto, do real, visto que o
modifica e possui características distintas, como a bidimensionalidade e o fato
de selecionar pontos no espaço e no tempo; além de ser um resíduo da realidade
impresso em uma imagem, e, portanto, uma transformação da realidade, uma
interpretação desta (MUZARDO, 2010, p.3)
Andrade
(2002, p.36) propõe o seguinte questionamento: “Seria a fotografia uma nova
forma de arte ou um auxílio para a ciência?” Ainda que o público ficasse
fascinado com as cópias exatas da natureza, os pintores realistas investiam no
exato uso das cores e formas da realidade, conservando a imaginação como algo
subjetivo. O interesse pela realidade exterior desviou o artista da arte
imaginativa levando-o a natureza. De acordo com a autora, os artistas
interessaram-se progressivamente pela luz, os chamados impressionistas.
Delacroix baseava-se em fotografias para pintar seus quadros. Monet observava a
paisagem marcada pela leitura da luz, com suas pinceladas suaves, fingindo
copiar a realidade e dando aos artistas da época a “possibilidade de enxergar
mais do que a imagem real.” (ANDRADE, 2002, p.36)
Com
o passar de pouco tempo, à fotografia foi-lhe atribuído o peso de expressar o
real, a foto sendo vista como prova, necessária e suficiente que atesta a
existência do que é visível.
Andrade
(2009) nos adverte que:
Embora
torne o mundo mais preciso de informações e conhecimento, a fotografia não é
uma cópia quimicamente revelada da realidade, não é apenas seu registro
documental e científico. É uma realidade revelada, resgatada, atingida e, para
alguns, até roubada. (ANDRADE, 2009, p.41)
As
primeiras fotos obtidas pelo daguerreotipo de tão perfeitas, com tamanha
nitidez registrada, conseguia amedrontar as pessoas, que tinham a impressão de
que aqueles pequenos rostos as observavam. Por este e outros motivos, a
fotografia passou a ser um mistério cheio de magias. Ao observar atentamente
uma imagem fotográfica, percebemos a cumplicidade do fotógrafo com o
fotografado. A técnica mais exata que consegue dar às suas criações um poder
mágico, “que um quadro nunca terá para nós”. (BENJAMIM apud ANDRADE, 2002, p. 47)
Esta
magia, evidentemente seria atacada pala Igreja Católica que a via como
“transgressora e pecadora, tão perigosa e diabólica que foi condenada por
reproduzir a natureza que só poderia ser contemplada pelos olhos abençoados dos
pintores.” (Andrade, 2002, p. 47)
Além
de assombrar a Igreja, a fotografia foi uma provocadora das mais diversas
reações esta invenção que mediante fixação de uma imagem em uma placa iodada
suscitou inúmeras dúvidas e aclamações contrárias. Espanto para os leigos, os
que desconheciam o processo de sua antecessora, a câmara escura. Medo nos
artistas que tinham como função registrar a história e compor retratos através
de sua arte. Indignação, em alguns intelectuais que temiam a contaminação da
fotografia na “Arte pela arte” (Andrade, 2002, p.34)
Entretanto,
com o passar do tempo, a fotografia foi acolhida e reconhecida seu valor
artístico:
A
pintura, está claro, não se extinguiu em 1839, como previu afoitamente um
pintor francês; os ressentidos logo pararam de denegrir a fotografia como uma
cópia servil; e em 1854 um grande pintor, Delacroix, declarou gentilmente como
lamentava que uma invenção tão admirável tivesse chegado tão tarde. (SONTAG,
2006, p. 131)
A fotografia conseguiu finalmente seu
merecido reconhecimento como uma modalidade artística. A prova mais absoluta é
o acervo de vários museus de arte que já não possuem apenas nas suas exposições
permanentes a pintura e a escultura, mas lá está a fotografia e o vídeo. (TAVARES,
2009)
Porém,
seus detratores ainda não foram extintos, há ainda muitas críticas a respeito
da fotografia, mas Sontag (2006) nos orienta:
Mas
é improvável que a defesa da fotografia como arte um dia venha cessar
completamente. Enquanto a fotografia não for apenas um modo voraz de ver, mas
sim um modo de ver que precisa ter a pretensão de ser especial e distintivo, os
fotógrafos continuarão a buscar abrigo (quando não cobertura) no santuário
profanado, mas ainda prestigioso da arte. (SONTAG, 2006, p.146)
Como
percebemos, os fotógrafos ainda continuarão a tomar nomenclaturas da arte, bem
como muitas de suas características para afirmarem-se como artistas e não como
meros operadores de uma máquina. Deste modo, é correto sim afirmar que ela é
uma ciência artística e uma arte mecânica, nunca podendo negar sua dicotomia:
A
fotografia tem um destino duplo... Ela é filha do mundo do aparente, do
instante vivido, e como tal guardará sempre algo do documento histórico ou
científico sobre ele; mas ela é também filha do retângulo, um produto das
belas-artes, o qual requer o preenchimento agradável ou harmonioso do espaço
com manchas em preto e branco ou em cores. Neste sentido, a fotografia terá
sempre um pé no campo das artes gráficas e nunca será suscetível de escapar
deste fato. (BRASSAÏ apud KOSSOY,
2001, p. 48)
Nenhum comentário:
Postar um comentário